Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0674/21.9BEAVR
Data do Acordão:02/08/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
CONCURSO
MÉDICO
CHEFE DE SERVIÇOS
HABILITAÇÕES
Sumário:É de admitir o recurso de revista em que a questão principal tem a ver com a determinação das habilitações exigidas por lei para concorrer ao cargo de «director de serviço de gastrenterologia» no âmbito de uma E.P.E.
Nº Convencional:JSTA000P31920
Nº do Documento:SA1202402080674/21
Recorrente:CENTRO HOSPITALAR A..., EPE, NA PESSOA DO SEU LEGAL REPRESENTANTE
Recorrido 1:AA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em «apreciação preliminar», na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
1. CENTRO HOSPITALAR A... ,EPE [CH A..] - entidade demandada nesta acção administrativa - vem, invocando o artigo 150º do CPTA, interpor recurso de revista do acórdão do TCAN - de 30.11.2023 - que concedeu provimento à apelação interposta pela autora da acção - AA -, revogando, em conformidade, a sentença do TAF de Aveiro - de 03.08.2022 - na parte afectada, e anulando a deliberação do CH A... de nomeação do contra-interessado - BB -, por violar o artigo 17º-A do DL nº176/2009, de 04.08, e condenando o CH A... a prosseguir o procedimento com vista à nomeação da autora, se nada a tal obstar, e negou provimento à sua [do CH A...] apelação.

Alega que o «recurso de revista» deve ser admitido em nome da «necessidade de uma melhor aplicação do direito» e em nome da «relevância jurídica e social da questão» - artigo 150º, nº1, do CPTA.

A autora e ora recorrida - AA - contra-alegou, defendendo, além do mais, a não admissão da «revista» por falta dos indispensáveis pressupostos legais - artigo 150º, nº1, do CPTA.

2. Dispõe o nº1, do artigo 150º, do CPTA, que «[d]as decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito».

Deste preceito extrai-se, assim, que as decisões proferidas pelos TCA’s, no uso dos poderes conferidos pelo artigo 149º do CPTA - conhecendo em segundo grau de jurisdição - não são, em regra, susceptíveis de recurso ordinário, dado a sua admissibilidade apenas poder ter lugar: i) Quando esteja em causa apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental; ou, ii) Quando o recurso revelar ser claramente necessário para uma melhor aplicação do direito.

3. Está em causa um procedimento para recrutar um clínico para director do serviço de gastrenterologia do CH A... - entidade publica empresarial, conforme DL nº18/2017, de 10.02 - cujo aviso de abertura foi publicado no DR de 14.06.2021 - 2ª Série, parte G, página 390.

Por deliberação do Conselho de Administração do CH A..., de 14.07.2021, foi nomeado para o cargo o médico BB, em regime de comissão de serviço, tendo sido preterida a médica AA.

Esta última intentou processo cautelar - nº674/21.9BEAVR - e acção principal - nº866/21.0 BEAVR - no TAF de Aveiro, pedindo, ali, a suspensão de eficácia da deliberação, e, aqui, a sua declaração de nulidade ou anulação - invocando, para o efeito, preterição de audiência prévia, violação de lei, traduzida na nomeação de candidato sem as qualificações legais, e na violação dos princípios constitucionais da igualdade e da imparcialidade, e a falta de fundamentação da deliberação - e o prosseguimento do procedimento para nomeação da autora para o cargo. E deduziu, ainda, pedido de condenação do CH A... no pagamento de indemnização.

O TAF de Aveiro proferiu «sentença» - ao abrigo do disposto no artigo 121º do CPTA - em que apenas julgou procedente o invocado vício de «falta de fundamentação» tendo, a final, julgado parcialmente procedente a acção, anulado a deliberação impugnada por falta da devida fundamentação, e improcedente o pedido de condenação.

Tanto a autora - AA - como a entidade demandada - CH A... - «apelaram» para o tribunal de 2ª instância - TCAN - o qual, por acórdão datado de 30.11.2023, «concedeu provimento à apelação interposta pela autora da acção», revogando a sentença na parte tida por afectada - violação do disposto no nº1 do artigo 17º-A do DL nº176/2009, de 04.08 - e anulando, nessa base, a deliberação impugnada, condenando o CH A... a prosseguir com o procedimento visando a nomeação da autora para o cargo, se a tal nada obstar, e «negou provimento à apelação do réu» [CH A...].

No seu afã de julgar, o TCAN julgou improcedentes a invocada nulidade da sentença, e os invocados erros de julgamento acerca das «questões» da falta de audiência prévia e da alegada violação dos artigos 47º nº2, 13º e 266º da CRP. Mas deu razão à apelante autora no tocante ao erro de julgamento de direito sobre a «questão da não aplicação dos critérios previstos no artigo 17º-A, do DL nº176/2009, de 04.08», no âmbito da candidatura em referência. A este particular respeito escreve-se no acórdão do tribunal de apelação, além do mais, o seguinte: «Ora, a norma do nº2 do artigo 28º do DL nº18/2007, de 10.02, que é de hierarquia igual à do nº1 do artigo 17º-A do DL nº176/99, de 04.08 [não havendo qualquer relação de especialidade entre elas], sendo aquela posterior a esta, não é, contrariamente ao que refere a sentença recorrida, com esta incompatível. Devendo conjugar-se o regime constante do nº2 do artigo 28º do DL nº18/2017, de 10.02, com o do nº1 do artigo 17º-A do DL nº176/2009, de 04.08, de tal forma que os trabalhadores integrados na carreira médica só podem exercer funções de direcção [chefia ou coordenação de departamento], desde que sejam titulares das categorias de assistente graduado sénior ou, em casos devidamente fundamentados, de assistente graduado [ver nº1 do artigo 17º-A do DL nº176/2009], e inscritos no colégio da especialidade da Ordem dos Médicos correspondente à área clínica onde vão desempenhar funções, devendo ser nomeados preferencialmente os que tenham evidência curricular de gestão e maior graduação na carreira médica [ver nº2 do artigo 28º do DL nº18/2017, de 10.02]. Contrariamente ao que entendeu a sentença recorrida, estas normas em vigor para o caso sub judice, não se opõem, mas compatibilizam-se. A primeira define as habilitações necessárias para o cargo, a segunda [para além de referir a necessidade de nomear os profissionais inscritos no colégio da especialidade da Ordem dos Médicos correspondente à área clínica onde vão desempenhar funções] define o critério de escolha entre os profissionais que têm aquelas habilitações a utilizar no âmbito de um processo de recrutamento dirigido ao preenchimento do cargo. Pelo que, à luz do artigo 7º do CC, e contrariamente ao que a sentença aduz, a norma do nº2 do artigo 28º do DL nº18/2017, de 10.02, não revoga a do nº1 do 17º-A do DL 176/2009, de 04.08. Como bem aponta a recorrente, existe um requisito a verificar, a montante, antes mesmo de se fazer intervir os critérios preferenciais previstos no nº2 do artigo 28º do DL nº18/2017, de 10.02, e que consiste em assegurar que o/a candidato/a tem de ser titular das categorias de assistente graduado sénior ou, em casos devidamente fundamentados, de assistente graduado, sob pena de não poder exercer aqueles cargos directivos. Assim sendo, fica evidente que entre os dois médicos que manifestaram interesse, apenas a recorrente - assistente graduada sénior - dispõe da habilitação necessária para ser directora de serviço, pois o contra-interessado é assistente hospitalar. A sentença recorrida padece de erro de julgamento por não ter considerado que o contra-interessado não se encontra habilitado com as condições de que depende a possibilidade de manifestação de interesse individual para o exercício do cargo de direcção de serviço».

A entidade demandada e apelante - CH A... - discorda do assim decidido pelo tribunal de apelação e aponta ao respectivo acórdão «nulidade e erro de julgamento de direito». A nulidade traduzir-se-á, segundo diz, no facto de o motivo de anulação da «deliberação impugnada», consistente na falta da sua devida fundamentação, estar em contradição com os fundamentos da decisão judicial - artigo 615º, nº1 alínea c), do CPC, ex vi artigo 1º do CPTA - quer no que concerne ao enquadramento da questão quer no afastamento das regras gerais do procedimento administrativo em causa. Por sua vez, o erro de julgamento de direito, para além de se traduzir numa errada abordagem desse mesmo vício de «falta de fundamentação» - pois, alega, a exigência de um dever de «acrescida fundamentação» não tem base legal, nem no nº2 do artigo 28º do DL nº18/2017, nem em qualquer outra norma ou diploma legal que seja aplicável no caso vertente -, consubstancia-se, essencialmente, na errada tentativa de tentar compatibilizar o disposto nas normas dos artigos 28º nº2 do DL nº18/2017, de 10.02, e 17º-A nº1 do DL nº176/2009, de 04.08. Alega que elas são incompatíveis, já que as habilitações que uma e outra identificam como necessárias para admissão ao procedimento para chefe de serviço são muito diferentes, tendo, aliás, alega, aquele primeiro artigo revogado o último, no que aos procedimentos de recrutamento para director de serviço concerne, no âmbito das E.P.E. Conclui que os «critérios de admissão» ao procedimento aqui em causa foram os expressamente previstos naquele artigo 28º nº2, e que o acórdão ora recorrido errou ao considerar aplicável ao caso o disposto no artigo 17º-A referido. E acrescenta que assim o impõe uma interpretação segundo as regras legais - artigo 9º do CC -, ressumando da efectivamente feita no acórdão recorrido um desrespeito, desde logo, pelo princípio da separação e independência de poderes [artigo 3º, nº1, do CPTA].

Compulsados os autos, importa apreciar «preliminar e sumariamente», como compete a esta Formação, se estão verificados os «pressupostos» de admissibilidade do recurso de revista - referidos no citado artigo 150º do CPTA - ou seja, se está em causa uma questão que «pela sua relevância jurídica ou social» assume «importância fundamental», ou se a sua apreciação por este Supremo Tribunal é «claramente necessária para uma melhor aplicação do direito».

Ora, como vem sublinhando esta «Formação», a admissão da revista fundada na clara necessidade de uma melhor aplicação do direito prende-se com situações respeitantes a matérias relevantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente, ou, até, de forma contraditória, a exigir a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa como essencial para dissipar as dúvidas sobre o quadro legal que regula essa concreta situação, emergindo, destarte, a clara necessidade de uma melhor aplicação do direito com o significado de boa administração da justiça em sentido amplo e objectivo. E que a relevância jurídica fundamental se verifica quando se esteja - designadamente - perante questão jurídica de elevada complexidade, seja porque a respectiva solução envolve a aplicação conjugada de diversos regimes jurídicos, seja porque o seu tratamento tenha já suscitado dúvidas sérias na jurisprudência ou na doutrina. Por seu lado, a relevância social fundamental aponta para questão que apresente contornos indiciadores de que a respectiva solução pode corresponder a paradigma de apreciação de casos similares, ou que verse sobre matérias revestidas de particular repercussão na comunidade.

Como se depreende, a questão nuclear ainda litigada prende-se com a interpretação e aplicação ao caso do ora recorrente das normas dos artigos 28º nº2 do DL nº18/2017, de 10.02, e 17º-A nº1 do DL nº176/2009, de 04.08, cuja concatenação e aplicação foi díspar nos tribunais de instância, mas desdobra-se noutras questões satélites, como a da nulidade assacada ao «acórdão recorrido» e do alegado erro sobre a falta da devida fundamentação da «deliberação impugnada». Sobretudo essa questão nuclear mostra-se complexa, foi decidida de forma divergente, e envolve a aplicação de normas que pertencem a diferentes regimes jurídicos. Acresce que importa obter das mesmas uma interpretação que se possa tornar uniforme na resolução dos casos concretos, o que, atento o número de situações semelhantes de preenchimento de cargos de director de serviço, no âmbito do SNS, assume também particular relevância social. Bem vistas as coisas, tudo recomenda que seja revista a decisão de 2ª instância por este «Supremo Tribunal», como órgão máximo da jurisdição, visando clarificar e imprimir segurança a uma decisão complexa e de tratamento escasso na doutrina e na jurisprudência, e com potencialidade repetitiva.

Daí que, ponderadas as pertinentes críticas ínsitas nas alegações de revista à solução acolhida no acórdão do «tribunal de apelação», atenta a complexidade da questão e a vocação paradigmática da decisão que venha a ser proferida, impõe-se que o juízo ora impugnado seja objecto de reanálise e reponderação por este STA, de forma a dissipar as dúvidas que ainda subsistem.

Importa, pois, quebrar neste caso a regra da excepcionalidade dos recursos de revista, e admitir o aqui interposto pelo CH A....

Nestes termos, e de harmonia com o disposto no artigo 150º do CPTA, acordam os juízes desta formação em admitir a revista.

Sem custas.

Lisboa, 8 de Fevereiro de 2024. – José Veloso (relator) – Teresa de Sousa – Fonseca da Paz.