Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0477/13.4BELLE 01062/16
Data do Acordão:02/28/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JOSÉ GOMES CORREIA
Descritores:IVA
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
INCIDÊNCIA
TRANSMISSÃO DE BENS
DIRECTIVA COMUNITÁRIA
Sumário:I - O conceito de "transferência de uma universalidade de bens ou parte dela" previsto no artigo 19º da Directiva IVA foi interpretado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), nomeadamente no acórdão de 27 de Novembro de 2003, proferido no processo C-497/01 (caso Zita Modes Sàrl contra Administration de L'enregistrement et des domaines) no sentido de que abrange "a transmissão do estabelecimento comercial ou de uma parte autónoma de uma empresa que inclui elementos corpóreos e, se for o caso, incorpóreos que, em conjunto, constituem uma empresa ou parte de uma empresa que pode prosseguir uma actividade económica autónoma”.
II - A operação de cedência da posição contratual em contrato de locação financeira, que tem por objecto o imóvel em que se encontra instalado um estabelecimento de restaurante/bar, a favor de um ente societário distinto daquele a quem foram transmitidos os demais elementos componentes do estabelecimento e que prosseguiu com a sua exploração, não se mostra excluída da tributação em sede de IVA, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 3º do CIVA, norma nacional que concretizou aquele artigo 19º da Directiva IVA, mas antes está sujeito a tributação, a titulo de prestação de serviços, nos termos artigo 1º, nº1, alínea a), e 4º, nº1, ambos do CIVA.
III – Por seu turno, a transmissão dos diversos elementos do estabelecimento de restaurante/bar, designadamente mobília e equipamento, assim como a cessão da posição de empregador nos contratos de trabalho celebrados com os trabalhadores desse estabelecimento, a favor de outra sociedade, deve ser qualificada como “transmissão de estabelecimento”, para os efeitos do disposto no nº4 do artigo 3º do CIVA, e excluída de tributação em sede de IVA, se esses elementos corpóreos e incorpóreos se revelarem suficientes e bastantes para a sociedade cessionária prosseguir a atividade de restauração/bar que era desenvolvida pela cedente.
IV - A ampliação do recurso prevista no art. 636.º do CPC remete para a possibilidade do recorrido (parte vencedora ou parcialmente vencedora) prevenir a discussão de fundamentos que tenha invocado e que o tribunal não tenha julgado favoravelmente para a procedência da acção, caso o tribunal de recurso venha a reconhecer razão aos fundamentos invocados no recurso interposto pela parte vencida.
V - Havendo pluralidade de fundamentos na acção com base no pedido e causa de pedir pode suscitar-se a ampliação do recurso uma vez que esta serve para possibilitar o conhecimento de questões que o recorrente antes tenha suscitado.
VI - O facto de o locador ter aceite autorizar a operação de cedência da posição de locatário apenas no caso de essa cedência ser feita para a sociedade “A...”, por esta lhe oferecer melhorias garantias de cumprimento do contrato, em nada altera a qualificação da operação em sede de IVA, não se justificando que tal factualidade fosse digna, em termos úteis, de qualquer pronúncia por parte dos Serviços de Inspecção e que tal omissão tenha virtualidade para inquinar de invalidade o procedimento inspectivo.
VII - Significa que não se verifica a indicada preterição de formalidade legal susceptível de inquinar de invalidade o procedimento inspectivo e consequentemente os atos tributários impugnados, improcedendo o fundamento invocado pela recorrida a título subsidiário ao abrigo do disposto no nº2 do artigo 636º do CPC.
VIII - A ATA fundamentou de forma suficiente o alargamento do procedimento inspectivo, não estando concretizado em que termos foi violado o princípio da boa-fé se em face dos argumentos e elementos carreados pelo contribuinte aquando do exercício do seu direito de audição, não se impondo aos SIT a confirmação de tais elementos.
IX - Na verdade, no tocante à argumentada falta de pronúncia sobre as questões suscitadas no exercício do direito de audição por parte da Recorrida, como bem denota o EPGA, o certo é que os Serviços de Inspecção não são obrigados a pronunciar-se sobre todos os argumentos aduzidos pelo contribuinte, mas apenas sobre os elementos que sejam susceptíveis de pôr em causa as conclusões do relatório.
Nº Convencional:JSTA000P31963
Nº do Documento:SA2202402280477/13
Recorrente:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:B..., LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo


1. – Relatório

Vem interposto recurso jurisdicional pela Representante da Fazenda Pública, visando a revogação da sentença de 27-06-2019, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por B..., LDA., melhor sinalizada nos autos, anulando-se as liquidações adicionais de IVA relativas aos períodos de 10-06 e 10-12 e respectivos juros.

Inconformada, nas suas alegações, formulou a recorrente Representante da Fazenda Pública, as seguintes conclusões:

Deve ser dado provimento ao presente recurso porquanto, como se mostra dos autos:
1 – A norma aplicada não vale para as operações em causa.
2 – Com efeito, a interpretação e aplicação feita desconsidera a personalidade jurídica e tributária dos beneficiários, “ficciona” um beneficiário elegendo como critério a realidade económica sobre a forma jurídica, solução estranha ao sistema do IVA, que põe em causa a neutralidade do imposto e origina desigualdades de tratamento, fonte de distorções da concorrência.
3 – Para além de, a realidade sub judice não se reconduzir ao conceito jurídico de transmissão de estabelecimento, ou desagregação deste, na condição de os elementos transmitidos objectivamente permitirem ao adquirente continuar a exercer uma actividade económica e independente, (que inequivocamente não pode reduzir-se a um acervo de bens materiais sem um espaço físico onde se instalar).
4 – Quer dizer, ao contrário do decidido, as cessões em análise não revestem os traços característicos da espécie prevista no artigo 3 nº 4 CIVA.
5 – Devendo considerar-se como transmissões de bens tributáveis, nos termos dos artigos 1 al. a) e 3 nº 1 CIVA, a venda dos equipamentos, do mobiliário e das existências, e, entender-se como prestação de serviço tributável a cessão no contrato de locação financeira, de acordo com o disposto nos artigos 1 al. a) e 4 nº 1 CIVA, atenta a vocação de universalidade deste imposto.
Assim, de harmonia com o exposto, e, principalmente, pelo que será suprido pelo Douto Tribunal, deve ser revogada a sentença recorrida, com as legais consequências, como é de JUSTIÇA.

A recorrida B..., LDA. apresentou contra-alegações, que concluiu nos seguintes termos:

A - O presente recurso da sentença lavrada pelo Meritíssimo “a quo”, interposto pela Fazenda Pública, advém da sua não conformação com o fato de no Aresto recorrido, ter sido dado prevalência à vertente económica sob a forma, para a aplicação da norma ínsita no n.° 4 do art. 3.° do CIVA.
B - Ora, os argumentos explanados pela Recorrente Fazenda Pública, subsumem-se a duas grandes questões, a primeira dela que perpassa por uma interpretação e aplicação do direito por parte do M.m.º juiz a quo que desconsidera a personalidade jurídica e tributária dos beneficiários, em prol de um beneficiário (que nas suas palavras) é ficcionado;
C - E por outro lado que a realidade em revisão não se enquadra no conceito jurídico de transmissão de estabelecimento ou desagregação deste no sentido dos elementos transmitidos poderem continuar a exercer uma atividade económica independente.
D - Cremos que ambos os argumentos explanados não têm cabimento e não são aptos a colocar em crise a Douta Sentença recorrida, porquanto, tendo em conta a origem comunitária do IVA e à vigência simultânea da ordem jurídica comunitária e interna, depara-se ao intérprete e aplicador do Direito a necessidade de efetuar a correspetiva articulação e concatenação entre estes dois “Mundos”.
E - Posto que, bem andou o M. m.° Juiz a quo, que atendendo ao Princípio do Primado, não deixou de ter em conta os princípios da neutralidade e da proporcionalidade, o que o levou a ter em conta, o verdadeiro interesse subjacente à operação por parte dos particulares seus intervenientes;
F - a preponderância do resultado económico sob a perspetiva jurídica e ao justo balanceamento entre os custos e benefícios com repercussões na capacidade contributiva de cada um deles.
G - Tendo sido dado por assente que a verdadeira razão de ser da operação perpassava pela separação entre os sócios AA e os demais; que esta separação incluía a repartição dos passivos e ativos entre eles, e que o estabelecimento “C...” incluía aqueles que ao primeiro caberiam;
H - Que sempre foi intenção que fosse a sociedade D... SA que passasse a deter esse mesmo estabelecimento, incluindo a posição de locatária no leasing imobiliário celebrado com o Banco 1..., e que só, por imposição deste, o mesmo AA, se viu forçado a integrar outra sociedade - que igualmente lhe pertence e domina -, sem obliterar o fato,
I - o dito C..., ter continuado a funcionar, com a mesma designação, objeto, decoração, pessoal, etc, outra não poderia ser a decisão do M. m.° Juiz a quo, que não aquela que muito bem proferiu, nada sendo de apontar à sentença revivenda neste sentido,
Pelo que assim deverá improceder o presente Recurso, mantendo-se a decisão Recorrida.
J - Caso não seja esse o entendimento por parte de VEXAS COLENDOS CONSELHEIROS (o que se admite por mero dever de patrocínio), sempre serão de acolher os argumentos explanados pela Recorrida em sede de alegações subsidiárias, porquanto:
I - A AT violou os princípios basilares do procedimento tributário ínsitos no artigo 55.° da LGT, tendo em linha de conta que quando notifica a Recorrida do Projeto do RIT e esta exerce o seu direito de resposta de forma extemporânea (i.e., após o prazo máximo legal para o fazer), apenas lhe restaria uma de duas soluções:
I.1. - Ou as tinha simplesmente por extemporâneas e mantendo o Projecto notificado o tornava definitivo;
I.2 - ou aceitando as razões do sujeito passivo, anulava as liquidações oficiosas por si propostas.
L - Impedida estaria de aproveitando o conteúdo dos argumentos explanados pelo sujeito passivo no seu direito de resposta, faz uso de um expediente sem correspondência na verdade material dos fatos - alínea a) do n.° 3 do artigo 36° do RCPIT - para elaborar um novo Projecto, sem correspondência com o anterior, sendo certo, que se não verificaram os pressupostos para a aplicação do preceito legal antes aludido.
M - E fazendo-o sem qualquer justificada fundamentação nem sequer se dignado a se pronunciar sobre os novos elementos carreados pelo sujeito passivo para os autos, em expressa violação do 7 do art. 60.° da LGT.
Pelo que também por esta via, deverão ser anuladas como o foram em primeira instância as liquidações impugnadas.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO DEVE O PRESENTE RECURSO IMPROCEDER, MANTENDO-SE A DECISÃO RECORRIDA, TENDO POR BASE:
- A MANUTENÇÃO DA SENTENÇA RECORRIDA, PELA INCONSEQUÊNCIA DOS ARGUMENTOS ALEGADOS PELA RECORRENTE;
- E, EM DERRADEIRA ANÁLISE E A TÍTULO SUBSIDIÁRIO, PELO PROVIMENTO DAS ALEGAÇÕES SUBSIDIÁRIAS DA AGRAVADA, CUJA CONSEQUÊNCIA SERÁ SIMILAR ÀQUELA POR TIDA EM ACÓRDÃO RECORRIDO, QUE SEJA, A ANULAÇÃO DAS LIQUIDAÇÕES IMPUGNADAS.
POR TUDO O ACIMA EXPOSTO E PELO MUITO QUE VEXAS DOUTAMENTE SUPRIRÃO,
JULGANDO DESTE MODO, FARÃO VOSSAS EXCELÊNCIAS JUSTIÇA.

Neste Supremo Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, notificado nos termos do art. 146.º, n.º 1, do CPTA, pronunciou-se no sentido de dever ser julgado o recurso parcialmente procedente, com a fundamentação que se segue:

I. Objecto do recurso.
1. O presente recurso vem interposto da sentença do TAF de Loulé que julgou procedente a ação de impugnação judicial intentada contra os atos de liquidação adicionais de IVA, relativos aos meses de junho e dezembro de 2010, com juros compensatórios, no valor global de € 337.437,16 euros.
A Recorrente insurge-se contra o assim decidido, por considerar que a sentença incorreu em erro de julgamento, por errónea interpretação e aplicação do disposto no artigo 3º, nº4, do CIVA. Para o efeito alega que «…a interpretação e aplicação feita desconsidera a personalidade jurídica e tributária dos beneficiários, “ficciona” um beneficiário elegendo como critério a realidade económica sobre a forma jurídica, solução estranha ao sistema do IVA, que põe em causa a neutralidade do imposto e origina desigualdades de tratamento, fonte de distorções da concorrência».
Mais alega que «…a realidade sub judice não se reconduzir ao conceito jurídico de transmissão de estabelecimento, ou desagregação deste, na condição de os elementos transmitidos objectivamente permitirem ao adquirente continuar a exercer uma actividade económica e independente, (que inequivocamente não pode reduzir-se a um acervo de bens materiais sem um espaço físico onde se instalar).
Concluindo, assim, que « (…) as cessões em análise não revestem os traços característicos da espécie prevista no artigo 3 nº 4 CIVA, devendo considerar-se como transmissões de bens tributáveis, nos termos dos artigos 1 al. a) e 3 nº 1 CIVA, a venda dos equipamentos, do mobiliário e das existências, e, entender-se como prestação de serviço tributável a cessão no contrato de locação financeira, de acordo com o disposto nos artigos 1 al. a) e 4 nº 1 CIVA, atenta a vocação de universalidade deste imposto».
E termina pedindo a revogação da sentença.
2. Em sede de contra-alegações a Recorrida invoca, a título subsidiário e ao abrigo do disposto no nº2 do artigo 636º do CPC, a ilegalidade do procedimento inspetivo, por o primeiro relatório ter sido substituído por um outro com diversa fundamentação e que serviu de base às liquidações, que no seu entendimento viola o disposto no nº7 do artigo 60º da LGT, por não ter tido em consideração os elementos por si aportados aquando do exercício do direito de audição.
II. Fundamentação de facto da sentença do TAF de Loulé.
1. Na sentença recorrida deu-se como assente que no âmbito de acordo dos respetivos sócios (Pesem embora a forma irregular e anómala do acordo celebrado entre os sócios (aparentemente não foi celebrado no âmbito de assembleia geral convocada para o efeito), este acordo teve em vista a saída da sociedade do sócio AA, constituindo a cedência de bens e direitos da sociedade uma espécie de amortização da sua quota por parte da sociedade (e não propriamente a “liquidação” da sociedade, como parece transparecer da sentença recorrida).), em 17/06/2010, a sociedade “B....” cedeu gratuitamente a posição no contrato de locação financeira (leasing) celebrado com o Banco 1...” para aquisição de prédio urbano, à sociedade “A...…Unipessoal, Lda.”.
Mais se deu como assente que a ATA qualificou tal cessão da posição contratual como uma prestação de serviços e sujeita a tributação, ao abrigo do disposto nos artigos 1º, nº1, alínea a), 4º, nº1, e nº2, alínea b), e 16º, nº2, alínea c), todos do CIVA.

Mais se deu como assente que no referido prédio urbano estava instalado um estabelecimento comercial de bar, explorado pela sociedade “B...”, que transmitiu para a sociedade “D...…S.A.” todos os bens e equipamento do referido estabelecimento, que passou a ser explorado por esta última sociedade, assim como os contratos com diversos trabalhadores.

Mais se deu como assente que a ATA emitiu duas liquidações, sendo que «a liquidação adicional de IVA n.º 13006133, relativa ao período 10.06, no valor de € 269.770,64, resultou da cedência de posição contratual da Impugnante, a favor da sociedade E..., no contrato de locação financeira relativa ao prédio sito no Largo ..., em ..., onde funcionava o estabelecimento «C...»; já a liquidação adicional de IVA n.º ...35, relativa ao período 10.12, no valor de € 42.000,00, resultou da venda de equipamentos, bens mobiliários e existências do estabelecimento «C...» à sociedade D... e D...» (sublinhados nossos).

2. Para se decidir pela procedência da ação o tribunal “a quo” fez as seguintes considerações: «…considerando que um estabelecimento comercial é uma universalidade composta por um conjunto de coisas, corpóreas e incorpóreas (em que se inclui o direito ao local do exercício da actividade), devidamente organizadas para a prática do comércio, e que, nos aludidos termos, o estabelecimento «C...» foi efectivamente transmitido da esfera patrimonial da Impugnante para a do seu ex-sócio AA, é de desconsiderar, por se dever privilegiar a vertente económica sobre a forma – que, no caso, não traduz a exigência de qualquer formalidade essencial, mas, apenas, a manutenção da actividade por um sujeito passivo de IVA -, o facto de formalmente terem surgido dois adquirentes, ambos dominados por AA. Sendo que pelo facto de a sociedade D... SA, ter continuado a explorar o estabelecimento «C...» no mesmo local, com os mesmos equipamentos, bens mobiliários, existências e funcionários, e sendo, pois, sujeito passivo de IVA nessa actividade de restauração, se conclui que as operações que deram origem às liquidações impugnadas não devem ser consideradas prestações de serviços nem transmissões de bens, mas sim a cessão de um estabelecimento comercial a um sujeito passivo de IVA, motivo pelo qual não são tributáveis».

III. Análise do Recurso.

(i) A questão que se coloca consiste em saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao ter considerado verificada a exclusão da tributação em sede de IVA das operações realizadas entre a sociedade aqui Recorrida e as sociedades “A...” e “D...”, ao abrigo do disposto no artigo 3º, nº4, do CIVA;

E subsidiariamente,

(ii) Saber se ocorreu preterição de formalidade legal no procedimento de inspeção, cujo relatório deu origem às liquidações impugnadas, por falta de apreciação.

1. Quanto à questão da tributação em sede de IVA das operações realizadas pela sociedade “B...”.

No entendimento sufragado na sentença recorrida (e pelo MºPº em 1ª instância), ainda que as duas operações tenham sido formalmente realizadas entre diferentes entes societários, as mesmas devem ser consideradas, para efeitos tributários em sede de IVA, como se de uma única operação se tratasse, uma vez que o “beneficiário” das operações é o mesmo, isto é, a mesma pessoa singular que detém o controlo desses entes societários.

Salvo o devido respeito, não podemos aceitar, nesta matéria, uma visão tão redutora da realidade jurídica subjacente às operações em causa nos autos.

Ainda que os acordos de cedência dos bens e da posição contratual no contrato de locação financeira tenham tido por finalidade beneficiar o sócio AA para efeitos de “amortização” da sua quota, como já referimos em nota supra, certo é que para efeitos de IVA tal propósito é indiferente. Por outro lado e como refere a Recorrente não se pode confundir a pessoa do sócio com a sociedade, pois são entes jurídicos diferentes, e o que conta para efeitos de IVA é a pessoa jurídica que exerce determinada atividade sujeita a imposto.

No caso concreto ficou assente que foram realizadas duas operações: (i) uma consistiu na cedência da posição contratual no contrato de locação financeira tendo por objeto um imóvel; (ii) a segunda consistiu na transmissão de bens, equipamento e contratos de trabalho relativos ao estabelecimento de restaurante/bar.

Se a primeira operação não nos oferece dúvidas sobre a sua caracterização como contrato de prestação de serviços, sujeita a IVA, nos termos qualificados pela administração tributária, já a segunda operação se nos revela mais complexa.

Com efeito, dispõe por um lado o art. 19.º da Directiva IVA: “Os Estados-Membros podem considerar que a transmissão, a título oneroso ou gratuito ou sob a forma de entrada numa sociedade, de uma universalidade de bens ou de parte dela não implica uma entrega de bens e que o beneficiário sucede ao transmitente” (sublinhado nosso). (…)

Por sua vez dispõe o nº4 do artigo 3º do CIVA:

“4 - Não são consideradas transmissões as cessões a título oneroso ou gratuito do estabelecimento comercial, da totalidade de um património ou de uma parte dele, que seja susceptível de constituir um ramo de actividade independente, quando, em qualquer dos casos, o adquirente seja, ou venha a ser, pelo facto da aquisição, um sujeito passivo do imposto de entre os referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º”.

Ora, no caso da cessão da posição contratual no contrato de locação financeira, não se mostram reunidos os requisitos de transmissão de uma universalidade de bens com vista ao exercício da atividade de restauração/bar, no exercício da qual lhe viesse a suceder a sociedade “A...”. Resultando da matéria de facto assente na sentença recorrida que foi a sociedade “D...” que prosseguiu o exercício da atividade da “B...”, é manifesto que naquela cessão da posição contratual não se verificam os requisitos de exclusão da tributação previstos nas normas transcritas. E como tem sido entendimento pacífico na doutrina (cfr. a este propósito Liliana Teixeira Barbosa, Cadernos IVA 2019, pág. 233 a 247, “O IVA na cessão da posição contratual gratuita no contrato de locação financeira”, no qual é citada diversa doutrina nesse sentido.), na cessão da posição contratual em contrato de locação financeira, «o cedente transmite apenas a sua posição jurídica, isto é, a sua posição contratual que lhe conferia um direito e não a propriedade exclusiva do bem que permanece da titularidade do cedido», pelo que, considerando a natureza conceitual residual da “prestação de serviços”, tal qual previsto no nº1 do artigo 4º do CIVA, «qualquer tipo de atribuição patrimonial que não seja uma contrapartida de uma transmissão de bens tenha subjacente uma prestação de serviços tributável» (Autora e obra citada).

Entendemos, assim, que esta primeira operação está sujeita a tributação em sede de IVA, por não ser subsumível na exclusão prevista no nº4 do artigo 3º do CIVA.

Já no que respeita à segunda operação, afigura-se-nos que a mesma não configura uma mera transmissão de mobiliário e equipamento do estabelecimento. É manifesto que as partes pretenderam que a atividade do estabelecimento de restaurante/bar continuasse a ser prosseguida naquele local, o que de facto ocorreu, pois houve igualmente a transferência dos trabalhadores para a sociedade “D...”, que assumiu a posição de empregadora nos contratos de trabalho. Por outro lado, continuando a atividade a ser exercida no local pela sociedade “D...”, pese a posição de locatária ser da sociedade “A...”, tal só é possível no pressuposto de ter havido uma cedência do imóvel por parte desta última sociedade com a anuência do locador. E por outro lado a própria transmissão realizada pela “B...” para a sociedade “D...” tem como pressuposto que esta continuasse a usufruir do prédio como local do seu estabelecimento com a anuência da “A...” e da locadora.

Afigura-se-nos, assim, que a transmissão realizada pela Recorrida para a “D...” não se circunscreveu aos equipamentos e mobiliário, mas a outros elementos incorpóreos do estabelecimento comercial.

Ora, poderá esta operação ser configurada como “transmissão de estabelecimento” para os efeitos do disposto no artigo 4º, nº3, do CIVA?

Não parece oferecer dúvidas em face da matéria assente na sentença recorrida e do atrás exposto que a transmissão efetuada pela Recorrida para a “D...” envolve elementos de valor superior à simples soma do valor dos equipamentos e mobiliário.

Também não oferece dúvidas que o objectivo da “D...” foi de continuar a exercer a mesma atividade de restauração e bar que era prosseguido naquele local pela Recorrida.

Assim sendo, afigura-se-nos que neste caso se verificou uma transmissão de uma universalidade de bens subsumíveis na previsão do nº4 do artigo 3º do CIVA, pois foram transmitidos pela Recorrida à “D...” elementos que compunham o ativo do estabelecimento suficientes para a continuação por parte desta última da atividade que vinha sendo desenvolvida pela primeira. Na verdade, assegurada que se mostra a cedência do prédio por parte da “A...”, todos os demais elementos indispensáveis para o prosseguimento autónomo daquela atividade foram objeto de transmissão para a “D...” (sendo certo que o local onde se encontra instalado o estabelecimento pode não fazer parte dos elementos preponderantes e indispensáveis para o prosseguimento dessa atividade) (Cfr. a este propósito o acórdão do TCA Norte, de 10/05/2018, proc. 00145/06.3BEVIS, no qual é citada outra jurisprudência.).

Como decorre da jurisprudência citada na sentença recorrida e pelas partes, o conceito de "transferência de uma universalidade de bens ou parte dela" já foi interpretado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), nomeadamente no acórdão de 27 de novembro de 2003, proferido no processo C-497/01 (caso Zita Modes Sàrl contra Administration de L'enregistrement et des domaines) no sentido de que abrange "a transmissão do estabelecimento comercial ou de uma parte autónoma de uma empresa que inclui elementos corpóreos e, se for o caso, incorpóreos que, em conjunto, constituem uma empresa ou parte de uma empresa que pode prosseguir uma actividade económica autónoma, mas que não abrange a simples cessão de bens como a venda de stock de produtos."

Também no acórdão do STA de 05/05/2010, proc. 036/10, se adotou o entendimento sufragado por Patrícia Noiret Cunha (Imposto sobre o Valor Acrescentado: Anotações ao Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado e ao Regime do IVA nas Transacções Intracomunitária, Lisboa, ISG, 2004, p. 118, nota 3 ao artigo 3.º do CIVA.), no sentido de que: «a exclusão só se verifica se o adquirente for ou vier a ser, pelo facto da aquisição, um sujeito passivo de imposto, sendo necessário que o adquirente continue a exercer mesma actividade económica que vinha sendo exercida pelo transmitente, numa relação de sequência contínua e sem interrupções. (Cfr. tb. neste sentido o acórdão do TCA Sul de 11/02/2003, proc. 3807/00; e acórdão do TCA Norte, de 10/05/2018, proc. 00145/06.3BEVIS.).

Entendemos, assim, que a transmissão operada pela Recorrida para a sociedade “D...” é subsumível na previsão do nº 4 do artigo 3º do CIVA, pelo que está neste caso excluída a sua tributação em sede de IVA.

2. QUANTO À PRETERIÇÃO DE FORMALIDADE LEGAL NO PROCEDIMENTO INSPETIVO.

Alega a Recorrida a este propósito que a ATA prorrogou artificialmente por um mês o procedimento inspetivo para alterar o primeiro relatório que lhe foi notificado e sobre o qual se tinha pronunciado, tendo invocado nova fundamentação de forma a rodear os anteriores argumentos da Recorrida, o que no seu entendimento viola o princípio da boa-fé consagrado no artigo 55º da LGT.

Considera, assim, que a ATA não tinha qualquer fundamento ao abrigo do disposto no artigo 36º, nº3, alínea a), do RCPIT para prorrogar o procedimento inspetivo, e por outro lado não apreciou os novos elementos por si apresentados, em violação do disposto no nº7 do artigo 60º da LGT.

Afigura-se-nos, contudo, que não assiste razão à impugnante e aqui Recorrida.

Na verdade, a ATA fundamentou de forma suficiente o alargamento do procedimento inspetivo, não se vislumbrando em que termos foi violado o princípio da boa-fé se em face dos argumentos e elementos carreados pelo contribuinte aquando do exercício do seu direito de audição, se impõe aos Serviços de Inspeção a confirmação de tais elementos.

Quando à alegada falta de pronúncia sobre as questões suscitadas no exercício do direito de audição por parte da Recorrida importa referir que os Serviços de Inspeção não são obrigados a pronunciar-se sobre todos os argumentos aduzidos pelo contribuinte, mas apenas sobre os elementos que sejam suscetíveis de por em causa as conclusões do relatório. Ora, alega a Recorrida a este propósito que a ATA não se pronunciou «sobre os elementos relativos à imposição do Banco 1... sobre a substituição do locador/devedor, ou seja, para a Recorrida ficou demonstrado que foi o locador que impôs que fosse a sociedade “E..." a tomar a posição de locatária e não a sociedade “D...”».

Ora, o facto de o locador ter aceite autorizar a operação de cedência da posição de locatário apenas no caso de essa cedência ser feita para a sociedade “A...”, por esta lhe oferecer melhorias garantias de cumprimento do contrato, em nada altera a qualificação da operação em sede de IVA, pelo que não vislumbramos em que termos tal facto devia merecer qualquer pronúncia por parte dos Serviços de Inspeção e que tal omissão tenha potencialidade para inquinar de invalidade o procedimento inspetivo.

Entendemos, assim, que não se verifica a apontada preterição de formalidade legal suscetível de inquinar de invalidade o procedimento inspetivo e consequentemente os atos tributários impugnados.

IV. CONCLUSÃO.

a) O conceito de "transferência de uma universalidade de bens ou parte dela" previsto no artigo 19º da Diretiva IVA foi interpretado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), nomeadamente no acórdão de 27 de novembro de 2003, proferido no processo C-497/01 (caso Zita Modes Sàrl contra Administration de L'enregistrement et des domaines) no sentido de que abrange "a transmissão do estabelecimento comercial ou de uma parte autónoma de uma empresa que inclui elementos corpóreos e, se for o caso, incorpóreos que, em conjunto, constituem uma empresa ou parte de uma empresa que pode prosseguir uma actividade económica autónoma”;

b) A operação de cedência da posição contratual em contrato de locação financeira, que tem por objeto o imóvel em que se encontra instalado um estabelecimento de restaurante/bar, a favor de um ente societário distinto daquele a quem foram transmitidos os demais elementos componentes do estabelecimento e que prosseguiu com a sua exploração, não se mostra excluída da tributação em sede de IVA, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 3º do CIVA, norma nacional que concretizou aquele artigo 19º da Diretiva IVA, mas antes está sujeito a tributação, a titulo de prestação de serviços, nos termos artigo 1º, nº1, alínea a), e 4º, nº1, ambos do CIVA;

c) Já a transmissão dos diversos elementos do estabelecimento de restaurante/bar, designadamente mobília e equipamento, assim como a cessão da posição de empregador nos contratos de trabalho celebrados com os trabalhadores desse estabelecimento, a favor de outra sociedade, deve ser qualificada como “transmissão de estabelecimento”, para os efeitos do disposto no nº4 do artigo 3º do CIVA, e excluída de tributação em sede de IVA, se esses elementos corpóreos e incorpóreos se revelarem suficientes e bastantes para a sociedade cessionária prosseguir a atividade de restauração/bar que era desenvolvida pela cedente;

d) Atento que a sentença recorrida assim não o entendeu em parte, padece nessa parte do vício de erro de julgamento que lhe é assacado pela Recorrente, motivo pelo qual se impõe a sua revogação, julgando-se o recurso parcialmente procedente, assim como a ação de impugnação apenas parcialmente procedente.

*

Os autos vêm à conferência corridos os vistos legais.

*

2. FUNDAMENTAÇÃO:

2.1. - Dos Factos:

Na decisão recorrida foi fixado o seguinte probatório reputado relevante para a decisão:


1.
No dia 9 de Abril de 2012 iniciou-se uma acção inspectiva dirigida a B..., LDA., de âmbito geral e relativa aos exercícios de 2008 a 2010 – cfr. fls. 54 do apenso.

2.

Em 28 de Agosto de 2012, foi elaborado o Projecto de Relatório daquela acção inspectiva no qual se concluiu por correcções em sede de IRC e IVA nos exercícios de 2008 (€ 262.091,66 – IRC; € 44.191,20 - IVA), 2009 (€ 137.238,72 – IRC; € 13.584,31 - IVA) e 2010 (€ 761.888,85 – IRC; € 6.845,78 - IVA) – cfr. fls. 93- 112 dos autos.

3.

B..., LDA., exerceu o seu direito de audição prévia – cfr. fls. 113-128 dos autos que aqui se dão por integralmente reproduzidas.

4.

No dia 28 de Setembro de 2012, a Administração Tributária notificou a B..., LDA., que:

a) “o prazo para a conclusão do procedimento da inspecção tributária previsto no n.º 2 do artigo 36.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária (…) foi ampliado por 1 mês, nos termos da alínea a) do n.º 3 do artigo antes referido, prevendo-se a sua conclusão até 9/11/2012” – cfr. fls. 133 dos autos;

b) Dispunha de 15 dias para exercer o seu direito de audição prévia sobre o novo Projecto de Relatório – cfr. fls. 134 dos autos.

5.

B..., LDA., exerceu o seu direito de audição prévia quanto ao segundo projecto de relatório – cfr. fls. 163 e seguintes dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.

6.

Em 22 de Outubro de 2012, foi elaborado novo Relatório de Inspecção que consta de fls. 53-84 do apenso, aqui se dá por integralmente reproduzido e que, no que ora interessa, tem o seguinte teor:

“(…)

Conclusões da Acção Inspectiva

I - Descrição sucinta das conclusões da acção de inspecção

1 – Correcções técnicas

Foram efectuadas correcções técnicas em sede de IVA, no exercício de 2010, no montante de € 311.770,74, conforme se descreve no capítulo III.

2- Aplicação de métodos indiretos

Em resultado da acção inspectiva efectuada à empresa B..., LDA., com o NIPC: ...91, a seguir designado por sujeito passivo, abrangendo os exercícios de 2008, 2009 e 2010, de acordo com os factos relatados nos pontos IV e V propomos as seguintes correcções, apuradas com recurso a métodos indirectos, em sede de [IRC e de IVA].

(…)

III – Descrição dos factos e fundamentos das correcções meramente aritméticas à matéria tributável

(…)

2 – Correcções aritméticas

2.1 –Correcções em sede de IVA

2.1.1 – Falta de liquidação do IVA no Contrato de Cedência de Posição Contratual

Em 22 de Novembro de 2004, foi celebrado um contrato de locação financeira imobiliária pelo qual o Banco 1..., locou ao S.P., o prédio urbano sito em Largo ..., em ..., inscrito na matriz sob o ...96 da freguesia .... O Imóvel estava destinado a uma agência bancária, era composto por ... e 3 andares. O preço de aquisição foi de € 2.000.000,00 e o prazo da locação financeira foi de 15 anos.

Durante os anos de 2004, 2005 e 2006 foram efetuadas obras de remodelação no referido edifício, no sentido de construírem um restaurante e Bar, designadamente restaurante / bar "C...”. De acordo com a documentação contabilística, o restaurante começou a ser explorado no ano de 2006. Em Junho de 2010, foi celebrado um contrato de cessão de posição contratual em que o s.p. cedeu a sua posição contratual no aludido contrato de locação financeira a favor da empresa E... Unipessoal Limitada, NIPC: ...69.

A referida cedência da posição contratual do locatário para outra entidade, E... Unipessoal Limitada, NIPC: ...69, que será a nova locatária, está sujeita a IVA, uma vez que estão sujeitas a IVA:

- Conforme refere a alínea a) do n° 1 do artigo 1.º do CIVA “As transmissões de bens e as prestações de serviços efectuadas no território, a titulo oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal";

- De acordo com o disposto no nº 1 do art. 4º do citado diploma "são considerados como prestações de serviços as operações efectuadas a título oneroso que não constituem transmissões, aquisições intracomunitárias ou importações de bens.";

- Pelo referido nos pontos anteriores, para efeitos de IVA, o conceito de “prestação de serviços" tem um carácter residual, abrangendo todas as operações decorrentes da actividade económica que não sejam definidas como transmissões, aquisições intracomunitárias ou importações de bens. Por outro lado, a alínea b) do n.º 2 do mesmo art. 4 determina que " consideram-se ainda prestações de serviços a título oneroso as prestações de serviços a título gratuito efectuadas pela própria empresa com vista às necessidades particulares do seu titular, do pessoal ou em geral, a fins alheios à mesma”, pelo que a cedência da posição contratual é considerada para efeitos do IVA uma prestação de serviços;

- Segundo informação da Direção de Serviços do Imposto Sobre o Valor Acrescentado n.º 2175 de 22-08-1995 “Quando ocorre a cedência de posição contratual durante a vigência do contrato de locação financeira, ou seja, antes de efectuada a opção de compra, verifica-se uma perda voluntária de um direito que o locatário demite de si, atribuindo-o ou cedendo-o a outrem." "Tal operação consubstancia uma prestação de serviços tributada nos termos dos citados normativos, sendo o valor tributável determinado, de acordo com a alínea c) do nº 2 do art. 16º do CIVA, em função do valor normal do serviço, definido no n.º 4 do mesmo artigo".

Pelos factos expostos conclui-se que a cessão de posição no contrato de locação financeira imobiliária, em 17 de Junho de 2010, é uma operação sujeita a imposto, uma vez que esta operação consubstancia-se como uma prestação de serviços de acordo com o conceito residual definido no n° 1 do art. 4 do CIVA. Porque o que se tributa não é a transmissão do bem, mas sim uma prestação de serviços que não consta de qualquer listo anexa ao código, a taxa a aplicar é o normal que, no mês de ano de Junho de 2010, era de 20%.

(…) 2.1.2 - Transmissão das existências em bens móveis do activo imobilizado

Verificou-se também a falta de liquidação referente à venda dos equipamentos, bens mobiliários e das existências, datada do 31/12/2010 (vide anexo n° 1)

Conforme fatura, constante no anexo nº 2, a empresa alienou as existências, o mobiliário e os equipamentos, à empresa F... SA NIPC: ...37, não liquidando IVA ao abrigo do n.° 4 do artigo 3º do CIVA, contudo não é aplicável o referido no nº 4 do artigo 3 do CIVA, uma vez que o estabelecimento comercial/património da empresa era constituído pelas existências, pelos bens moveis, pelo direito no contrato de locação financeira e ainda pela própria clientela ou aviamento, constituindo este último o imóvel onde era exercida a actividade de restauração. Ao ser transmitido exclusivamente as existências e os bens móveis, não se transmite a totalidade do património ou uma parte dele, susceptível de constituir um ramo de actividade independente, por não ser transmitido o direito na posição do contrato de locação financeira, nem tão pouco a clientela, pois esta cedência de posição contratual do referido imóvel foi efectuada para uma 3.ª sociedade.

Pelo que se referiu anteriormente o IVA a liquidar pela venda do equipamento e dos bens mobiliários do restaurante / bar "C..." é de € 42.000,00 (200.000,00 x 21%). uma vez que estamos na presença de operações sujeitas a IVA, nos termos do art 1 do ClVA.

(…)

VI – Regularizações efectuadas pelo SP no decurso da acção inspectiva (…)

Em sede de IVA

No decurso da acção inspectiva, o SP regularizou, somente, as correcções de IVA efectuadas através de métodos indirectos, tendo para o efeito entregue as declarações periódicas de IVA de substituição (…). As declarações foram acompanhadas do respectivo meio de pagamento. (…)”.

7.

No dia 26 de Novembro de 2012, B..., LDA., apresentou pedido de revisão da matéria colectável fixada por métodos indirectos, requerendo “ao abrigo do art. 91.º, n.º 4, da LGT, a nomeação de perito independente” – cfr. fls. 91-110 do apenso.

8.

Através do Ofício n.º ...05, de 29 de Novembro de 2012, o Chefe de Divisão de Tributação e Cobrança da Direcção de Finanças de Faro notificou a mandatária de B..., LDA., para efectuar o pagamento referente à remuneração do perito independente – cfr. fls. 112 do apenso.

9.

Em 4 de Dezembro de 2012, B..., LDA., efectuou aquele pagamento – cfr. fls. 115 do apenso.

10.

Através do Ofício n.º ...33, de 7 de Dezembro de 2012, o Chefe de Divisão de Tributação e Cobrança da Direcção de Finanças de Faro notificou BB que foi nomeado perito independente e que deveria, nessa qualidade, comparecer na Direcção de Finanças de Faro pelas 15:00 horas do dia 17 de Dezembro de 2012 para apreciar o pedido de revisão da matéria tributável apresentado B..., LDA., contra a matéria tributável de IVA dos anos de 2008 a 2010 – cfr. fls. 118-119 do apenso.

11.

No dia 17 de Dezembro de 2012, compareceram os peritos indicados pela Administração e por B..., LDA., não tendo comparecido na reunião o perito independente BB, não tendo sido possível estabelecer acordo – cfr. fls. 126 do apenso.

12.

O perito independente BB não remeteu qualquer parecer – cfr. fls. 125 do apenso.

13.

O Director de Finanças de Faro apreciou as posições assumidas pelos dois peritos e, concordando com a posição do perito da Administração Tributária, manteve a fixação da matéria colectável de IVA apurada na acção inspectiva – cfr. fls. 124-125 do apenso.

14.

Consequentemente foram emitidas as liquidações adicionais de IVA relativas aos períodos 10.06 (€ 269.770,74) e 10.12 (€ 42.000,00), e respectivos juros, no valor global de € 337.437,16 (actos impugnados) – cfr. fls. 175 do apenso e 79-82 dos autos.

15.

Em 1 de Janeiro de 2010:

a) B..., LDA., tinha como sócios AA, CC e DD – cfr. fls. 83-84 dos autos;

b) B..., LDA., era arrendatária, no âmbito de um contrato de leasing celebrado com o banco Banco 1... do prédio urbano sito no Largo ..., ..., em ... – cfr. fls. 126 dos autos;

c) B..., LDA., tinha instalado, naquele prédio, um estabelecimento de restauração designado «C...» - cfr. fls. 126 dos autos;

d) B..., LDA., era dona de dois prédios urbanos na Rua ..., e de quatro lugares de estacionamento no edifício ..., tudo em ... - cfr. fls. 126 dos autos.

16.

Ainda em 1 de Janeiro de 2010, os sócios de B..., LDA., celebraram um acordo, que em 5 de Dezembro de 2011 reduziram a escrito sob a designação «Contrato de Separação», nos termos do qual acordaram dividir o património da sociedade nos seguintes termos:

“(…)

a) Para o outorgante AA, ou para quem ele indicar:

a.1 – A posição de arrendatária no contrato de leasing (…)

a.1.1 – A posição de arrendatária no contrato de leasing supra identificado traduz o direito de adquirir um imóvel no valor de € 1.939.303,48 e a assunção de uma dívida no valor de € 1.439,303,48 junto da instituição bancária em causa;

a.2 – A assunção da dívida no valor de € 268.142,76 junto do Banco 1... e cujo devedor original era B..., tendo o banco credor aceitado a transmissão da dívida;

a.3 – A assunção da dívida no valor de € 231.857,24, junto da Unicer e cujo devedor original era B..., tendo o credor aceitado a transmissão da dívida;

a.4 – Metade indivisa dos prédios urbanos sitos na Rua ... (…);

a.5 – Dois lugares de estacionamento identificados como A...3 e A...4 no edifício ... (…);

a.6 – O estabelecimento comercial de restaurante e bar com todo o mobiliário e equipamento nele existente, designado por «C...» pelo valor de € 200.000,00, já pago;

a.7 – A posição de promitente comprador no contrato promessa de compra e venda (…) referente às fracções identificadas comercialmente com os n.ºs 7 e 8 da ...

b) Para os outorgantes DD e CC, ou a quem estes indicarem:

b.1 – A posição de beneficiários, na proporção de 50%, para cada um, em relação à totalidade do capital da sociedade F...;

b.2 – A totalidade do capital da sociedade B... sendo certo que os mesmos já detinham 50% do referido capital;

b.3 – A totalidade do capital da sociedade G..., já antes detida por estes.

(…)” – cfr. fls. 127-128 dos autos.

17.

AA pretendeu que a posição de arrendatária no contrato de leasing celebrado entre B..., LDA., e o banco Banco 1... fosse assumida pela sociedade D... SA – cfr. o depoimento de EE.

18.

O banco Banco 1... face à situação financeira débil da D... SA, não aceitou que esta sociedade substituísse a B..., LDA., no contrato de leasing – cfr. o depoimento de EE.

19.

O Conselho de Administração da sociedade D... SA, é composto por AA (Presidente), FF (Vogal) e GG (Vogal) – cfr. fls. 358v dos autos.

20.

No dia 17 de Junho de 2010, foi reduzido a escrito um acordo designado por «Contrato de Cessão de Posição Contratual n.º ...90», celebrado entre o banco Banco 1... B..., LDA., e E..., Unipessoal, Lda., nos termos do qual a B..., LDA., cedeu à sociedade E... a sua posição no contrato de locação financeira relativo ao prédio sito no Largo ..., em ... – cfr. fls. 129-130 dos autos.

21.

A gerência da sociedade E..., Unipessoal, Lda., é exercida pelo sócio AA – cfr. fls. 353v dos autos.

22.

Em 2010:

a) B..., LDA., celebrou com D... SA, e alguns trabalhadores do estabelecimento «C...» a cedência da sua posição contratual, enquanto entidade empregadora, nos respectivos contratos de trabalho – cfr. fls. 600-603 dos autos;

b) O estabelecimento «C...» deixou de ser explorado por B..., LDA., e passou a ser explorado pela D... SA – cfr. depoimento de EE;

c) B..., LDA., vendeu a D... SA, o mobiliário e os equipamentos do restaurante/bar «C...», por € 200.000,00, sem IVA ao abrigo do artigo 3.º, n.º 4, do CIVA – cfr. fls. 532v dos autos.

FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Os documentos referidos não foram impugnados pelas partes e não há indícios que ponham em causa a sua genuinidade.

A testemunha EE prestou depoimento de forma descomprometida, pormenorizada e contextualizada, motivo pelo qual as suas declarações foram valoradas pelo Tribunal.


*

2.2.- Motivação de Direito

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos artigos 144º nº 2 e 146º nº 4 do CPTA e dos artigos 5º, 608º nº 2, 635º nºs 4 e 5 e 639º do CPC e 2º, al. e) do CPPT.
No caso, em face dos termos em que foram enunciadas as conclusões de recurso pela recorrente, a questão que cumpre decidir subsume-se a saber se a decisão vertida na sentença, que julgou procedente a impugnação, padece de erro de julgamento de direito, por errónea interpretação e aplicação do disposto no artigo 3º, nº4, do CIVA, porquanto as cessões em análise não revestem os traços característicos da espécie prevista nesse normativo, «devendo considerar-se como transmissões de bens tributáveis, nos termos dos artigos 1º, al. a) e 3º, nº 1 do CIVA, a venda dos equipamentos, do mobiliário e das existências, e, entender-se como prestação de serviço tributável a cessão no contrato de locação financeira, de acordo com o disposto nos artigos 1º, al. a) e 4º, nº 1 CIVA, atenta a vocação de universalidade deste imposto».

Vejamos.

Mais rigorosamente, numa primeira plana, como bem denota o EPGA no seu douto Parecer, importa aquilatar se a sentença enferma de erro de julgamento por ter ponderado que se verificava a exclusão da tributação em sede de IVA das operações realizadas entre a sociedade aqui Recorrida e as sociedades “A...” e “D...”, ao abrigo do disposto no artigo 3º, nº4, do CIVA.
Do alegatório ressuma que a recorrente abjura a sentença recorrida que julgou procedente a acção sustentando que «…a interpretação e aplicação feita desconsidera a personalidade jurídica e tributária dos beneficiários, “ficciona” um beneficiário elegendo como critério a realidade económica sobre a forma jurídica, solução estranha ao sistema do IVA, que põe em causa a neutralidade do imposto e origina desigualdades de tratamento, fonte de distorções da concorrência».
Ainda aduz que «…a realidade sub judice não se reconduzir ao conceito jurídico de transmissão de estabelecimento, ou desagregação deste, na condição de os elementos transmitidos objectivamente permitirem ao adquirente continuar a exercer uma actividade económica e independente, (que inequivocamente não pode reduzir-se a um acervo de bens materiais sem um espaço físico onde se instalar).
Com base nessas apreciações epiloga que « (…) as cessões em análise não revestem os traços característicos da espécie prevista no artigo 3 nº 4 CIVA, devendo considerar-se como transmissões de bens tributáveis, nos termos dos artigos 1 al. a) e 3 nº 1 CIVA, a venda dos equipamentos, do mobiliário e das existências, e, entender-se como prestação de serviço tributável a cessão no contrato de locação financeira, de acordo com o disposto nos artigos 1 al. a) e 4 nº 1 CIVA, atenta a vocação de universalidade deste imposto».
Nessa vertente e em sede factual a sentença recorrida deu como assente a factualidade que “… no âmbito de acordo dos respetivos sócios, em 17/06/2010, a sociedade “B....” cedeu gratuitamente a posição no contrato de locação financeira (leasing) celebrado com o Banco 1...” para aquisição de prédio urbano, à sociedade “A...…Unipessoal, Lda.”; que a ATA qualificou tal cessão da posição contratual como uma prestação de serviços e sujeita a tributação, ao abrigo do disposto nos artigos 1º, nº1, alínea a), 4º, nº1, e nº2, alínea b), e 16º, nº2, alínea c), todos do CIVA; que no referido prédio urbano estava instalado um estabelecimento comercial de bar, explorado pela sociedade “B...”, que transmitiu para a sociedade “D...…S.A.” todos os bens e equipamento do referido estabelecimento, que passou a ser explorado por esta última sociedade, assim como os contratos com diversos trabalhadores e que a ATA emitiu duas liquidações, sendo que «a liquidação adicional de IVA n.º 13006133, relativa ao período 10.06, no valor de € 269.770,64, resultou da cedência de posição contratual da Impugnante, a favor da sociedade E..., no contrato de locação financeira relativa ao prédio sito no Largo ..., em ..., onde funcionava o estabelecimento «C...»; já a liquidação adicional de IVA n.º ...35, relativa ao período 10.12, no valor de € 42.000,00, resultou da venda de equipamentos, bens mobiliários e existências do estabelecimento «C...» à sociedade B...
Como já referido, a sentença julgou procedente a acção com base em que, no fundamental, «… um estabelecimento comercial é uma universalidade composta por um conjunto de coisas, corpóreas e incorpóreas (em que se inclui o direito ao local do exercício da actividade), devidamente organizadas para a prática do comércio, e que, nos aludidos termos, o estabelecimento «C...» foi efectivamente transmitido da esfera patrimonial da Impugnante para a do seu ex-sócio AA, é de desconsiderar, por se dever privilegiar a vertente económica sobre a forma – que, no caso, não traduz a exigência de qualquer formalidade essencial, mas, apenas, a manutenção da actividade por um sujeito passivo de IVA -, o facto de formalmente terem surgido dois adquirentes, ambos dominados por AA. Sendo que pelo facto de a sociedade D... SA, ter continuado a explorar o estabelecimento «C...» no mesmo local, com os mesmos equipamentos, bens mobiliários, existências e funcionários, e sendo, pois, sujeito passivo de IVA nessa actividade de restauração, se conclui que as operações que deram origem às liquidações impugnadas não devem ser consideradas prestações de serviços nem transmissões de bens, mas sim a cessão de um estabelecimento comercial a um sujeito passivo de IVA, motivo pelo qual não são tributáveis».
Quid juris?
Começaremos por dizer, em sintonia com o ponto de vista avocado pelo EPGA sobre o entendimento sufragado na sentença recorrida de que, apesar de as duas operações terem sido formalmente realizadas entre diferentes entes societários, as mesmas devem ser consideradas, para efeitos tributários em sede de IVA, como se de uma única operação se tratasse, uma vez que o “beneficiário” das operações é o mesmo, mais concretamente, a mesma pessoa singular que detém o controlo desses entes societários, que, mesmo que se admita que os acordos de cedência dos bens e da posição contratual no contrato de locação financeira tivesse como escopo favorecer o sócio AA para efeitos de “amortização” da sua quota, o certo é que isso irreleva para efeitos de IVA, sendo que, como refere a Recorrente não se pode confundir a pessoa do sócio com a sociedade, pois são entes jurídicos diferentes, e o que conta para efeitos de IVA é a pessoa jurídica que exerce determinada atividade sujeita a imposto.
Ora, dúvidas não sobram de que in casu foram concretizadas duas operações consistentes, a primeira, na cedência da posição contratual no contrato de locação financeira tendo por objecto um imóvel, a qual se tratou, claramente, de contrato de prestação de serviços, sujeita a IVA, nos termos qualificados pela administração tributária e, a segunda, na transmissão de bens, equipamento e contratos de trabalho relativos ao estabelecimento de restaurante/bar, cuja qualificação se revela mais intrincada como bem salientado pelo Ministério Público.
Nesse sentido, a questão «decidenda» passa fundamentalmente pela qualificação jurídica do negócio celebrado na vertente em apreço no quadro fáctico atrás fixado, tornando-se necessário, a par disso, verificar se os factos apurados possibilitam essa qualificação jurídica pois o artº artº5, nº.3, do CPC determina que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
Para deslindar a dita questão, como bem aponta o EPGA, há que convocar, de um lado, o disposto no art. 19.º da Directiva IVA segundo, a qual: “Os Estados-Membros podem considerar que a transmissão, a título oneroso ou gratuito ou sob a forma de entrada numa sociedade, de uma universalidade de bens ou de parte dela não implica uma entrega de bens e que o beneficiário sucede ao transmitente” e, doutra banda, o disposto no nº4 do artigo 3º do CIVA que textua “Não são consideradas transmissões as cessões a título oneroso ou gratuito do estabelecimento comercial, da totalidade de um património ou de uma parte dele, que seja susceptível de constituir um ramo de actividade independente, quando, em qualquer dos casos, o adquirente seja, ou venha a ser, pelo facto da aquisição, um sujeito passivo do imposto de entre os referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º”.
Operando com essa normação, temos por manifesto que no tocante à da cessão da posição contratual no contrato de locação financeira, não se verificam os requisitos de transmissão de uma universalidade de bens em ordem ao exercício da actividade de restauração/bar, no desempenho da qual lhe viesse a suceder a sociedade “A...”.
Com efeito, tendo-se apurado que foi a sociedade “D...” que continuou o exercício da actividade da “B...”, é forçoso concluir que em tal cessão da posição contratual não se verificam os requisitos de exclusão da tributação previstos nas normas transcritas.
Na senda do EPGA, temos, pois, por pacífico que na cessão da posição contratual em contrato de locação financeira, «o cedente transmite apenas a sua posição jurídica, isto é, a sua posição contratual que lhe conferia um direito e não a propriedade exclusiva do bem que permanece da titularidade do cedido», pelo que, considerando a natureza conceitual residual da “prestação de serviços”, tal como previsto no nº1 do artigo 4º do CIVA, «qualquer tipo de atribuição patrimonial que não seja uma contrapartida de uma transmissão de bens tenha subjacente uma prestação de serviços tributável» (cfr. Liliana Teixeira Barbosa, Cadernos IVA 2019, pág. 233 a 247, “O IVA na cessão da posição contratual gratuita no contrato de locação financeira”) .
Por assim ser, inelutavelmente, a primeira operação está sujeita a tributação em sede de IVA, por não ser subsumível na exclusão prevista no nº4 do artigo 3º do CIVA.


*

No tangente à segunda, continuamos a patrocinar o entendimento do EPGA no sentido de que essa operação não configura uma mera transmissão de mobiliário e equipamento do estabelecimento porquanto é por demais evidente que as partes pretenderam que a actividade do estabelecimento de restaurante/bar continuasse a ser prosseguida naquele local, como na realidade aconteceu, tanto mais que houve também a transferência dos trabalhadores para a sociedade “D...”, que assumiu a posição de empregadora nos contratos de trabalho.
Ao que acresce que, continuando a atividade a ser exercida no local pela sociedade “D...”, não obstante a posição de locatária ser da sociedade “A...”, isso só é viável no pressuposto de ter havido uma cedência do imóvel por parte desta última sociedade com a anuência do locador, sendo que a própria transmissão realizada pela “B...” para a sociedade “D...” tem como pressuposto que esta continuasse a usufruir do prédio como local do seu estabelecimento com a anuência da “A...” e da locadora.
No plano teórico, a questão «decidenda» prende-se com uma das problemáticas mais discutidas atinente aos de traços morfológicos que a doutrina e a jurisprudência têm assinalado entre trespasse de estabelecimento comercial e cessão de exploração de estabelecimento comercial instalado em prédio arrendado.
Numa primeira abordagem, poderá afirmar-se que enquanto o trespasse envolve a transmissão definitiva da titularidade do estabelecimento e, consequentemente, a substituição do arrendatário, na cessão de exploração do estabelecimento mantém-se a titularidade do estabelecimento e é temporária, pelo que se mantém o mesmo arrendatário (nesse sentido veja-se A. Varela, RLJ, Ano 123º, pág. 346 (nota) e Acórdãos da RP de 22/1/96 e de 9/4/96, CJ-XXI-I, pág. 201 e II, pág.215).
É que, o que caracteriza o contrato de cessão de exploração ou de locação de estabelecimento não é a cedência da fruição do imóvel, nem a do gozo do mobiliário ou do recheio que nele se encontre, mas a cedência temporária do estabelecimento como um todo, como uma universalidade, como uma unidade económica mais ou menos complexa; na transmissão efectuada pelo cedente, vai, portanto, incluído todo o somatório de elementos materiais e imateriais que integram a organização da empresa (desde os móveis e imóveis até à clientela, às patentes e segredos de fabrico, aos contratos, licenças, alvarás, etc.)- (A. Varela, RLJ, 100º-270).
Para poder falar-se em contrato de locação de estabelecimento, forçoso é demonstrar-se a existência de um estabelecimento ao tempo da celebração do negócio jurídico (cfr. Ferrer Correia e Maria Ângela Coelho, RDE,X/XI-281) pelo que, na síntese de todo o anteriormente exposto, podemos assentar que são elementos essenciais deste negócio:-a) a transferência; b)-onerosa; c)- temporária; d)- do direito de exploração de um estabelecimento comercial.
Assim, para que «in casu» houvesse locação de estabelecimento comercial ou cessão ou concessão de exploração de estabelecimento mercantil era necessário que pelo contrato celebrado o contraente que do mesmo é titular constituísse a favor do outro um direito à exploração da empresa-direito que teria de envolver o de gozo do prédio onde a empresa funciona (ou há-de funcionar) mas que com estoutro direito se não confunde:- o direito do locatário do estabelecimento tem por objecto o complexo de organização económica em que o estabelecimento se traduz e que é susceptível de ser integrado por elementos muito diversos, corpóreos e incorpóreos (direitos sobre móveis, de crédito, sinais destrutivos...), para além do direito ao uso do local (V.G. Lobo Xavier, ROA, 47º-763). Nela o titular do estabelecimento comercial cede temporariamente a fruição, não apenas do imóvel ou só dos móveis que interessam à unidade mercantil, mas de todos os elementos materiais e imateriais que integram a organização da empresa.
Sendo assim, é essencial para a decisão da questão em apreço a determinação dos elementos essenciais e os acessórios que integram o estabelecimento comercial pois, como se disse já, do estabelecimento, enquanto unidade económica, fazem parte elementos corpóreos (o imóvel utilizado, máquinas, mercadorias, matéria-prima, mobília, dinheiro, etc.) e elementos incorpóreos (direito ao uso exclusivo da insígnia, do nome do estabelecimento, marcas, patentes, direitos resultantes de contratos, de trabalho, de arrendamento, etc.)
Ora, como salienta Januário Gomes no seu Arrendamento Comercial, 2ª ed., pág. 165, a existência duma multiplicidade de elementos componentes do estabelecimento levanta o problema do seu «escalonamento», em termos de se problematizar quais são os elementos essenciais e quais são os secundários ou acessórios. O problema releva, fundamentalmente, em sede de negociação do estabelecimento, traduzindo-se em determinar os elementos que não podem deixar de ser incluídos na negociação, isto é, os elementos que, no seu conjunto, corporizam o «minimum» do estabelecimento. O critério mais utilizado é um critério funcional -um critério de relacionação elemento-fim- destinado a averiguar da essencialidade do elemento para o fim em causa; o critério tem sido, porém, criticado com base na sua pouca objectividade, mas a verdade é que não se lhe têm apresentado alternativas relevantes».
É importante neste ponto referir que está actualmente enfraquecida a tendência para reconduzir o estabelecimento a um dos seus elementos componentes pois, como refere Orlando de Carvalho in Alguns Aspectos de Negociação do Estabelecimento, RLJ, ano 115, pág. 9, «a confusão do estabelecimento com o direito ao local é um erro grosseiro, só compreensível numa fase pré-histórica da teoria do estabelecimento ou da empresa». Apesar disso e como adverte Januário Gomes da citada obra a págs. 166, o elemento local pode assumir, no estabelecimento concreto, uma importância extraordinária que não chega ao ponto de poder afirmar-se que o direito ao arrendamento, quando é esse o título de gozo do local, absorve o estabelecimento, não só em termos de função, como em termos de valor e daí as dificuldades em apurar se um contrato é de arrendamento comercial ou de cessão de exploração.
Nessas situações de confinidades de figuras jurídicas, existem zonas de fronteiras decorrendo efeitos extremamente relevantes, a nível de regime, da caracterização jurídica que se faça, especialmente entre o arrendamento comercial e a locação de estabelecimento em fase de formação ou gestação.
O problema do estabelecimento e da sua negociação tem a ver, necessariamente, com a determinação do referido «minimum» do estabelecimento o que vale por dizer que, se no momento de negociação o objecto se traduzir num estabelecimento, muito embora desfalcado de algum ou alguns dos seus elementos não essenciais, nada impedirá a caracterização do contrato como de locação de estabelecimento.
Assim, porque a transmissão realizada pela Recorrida para a “D...” não se restringiu aos equipamentos e mobiliário, mas a outros elementos incorpóreos do estabelecimento comercial, haverá que encarar a possibilidade desta operação ser caracterizada como “transmissão de estabelecimento” para os efeitos do disposto no artigo 3º, nº4, do CIVA, tanto mais que, do que ficou dito e assente a transmissão realizada pela Recorrida para a “D...” envolveu elementos de valor superior à simples soma do valor dos equipamentos e mobiliário e o objectivo da “D...” foi de continuar a exercer a mesma atividade de restauração e bar que era prosseguido naquele local pela Recorrida.
Nessa ponderação aponta-se para que se verificou uma transmissão de uma universalidade de bens subsumíveis na previsão do nº4 do artigo 3º do CIVA, dado que foram transmitidos pela Recorrida à “D...” elementos que compunham o activo do estabelecimento suficientes para a continuação por parte desta última da atividade que vinha sendo desenvolvida pela primeira. É que, mostrando-se garantida a cedência do prédio por parte da “A...”, todos os demais elementos indispensáveis para o prosseguimento autónomo daquela atividade foram objecto de transmissão para a “D...” quando é certo, como bem sublinha o EPGA por apelo ao acórdão do TCA Norte, de 10/05/2018, proc. 00145/06.3BEVIS, no qual é citada outra jurisprudência, que o local onde se encontra instalado o estabelecimento pode não fazer parte dos elementos preponderantes e indispensáveis para o prosseguimento dessa atividade.
Flui dessa jurisprudência que o conceito de "transferência de uma universalidade de bens ou parte dela" já foi interpretado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), nomeadamente no acórdão de 27 de novembro de 2003, proferido no processo C-497/01 (caso Zita Modes Sàrl contra Administration de L'enregistrement et des domaines) no sentido de que abrange "a transmissão do estabelecimento comercial ou de uma parte autónoma de uma empresa que inclui elementos corpóreos e, se for o caso, incorpóreos que, em conjunto, constituem uma empresa ou parte de uma empresa que pode prosseguir uma actividade económica autónoma, mas que não abrange a simples cessão de bens como a venda de stock de produtos."
E, como dá nota o EPGA, também no acórdão do STA de 05/05/2010, proc. 036/10, se adoptou o entendimento sufragado por Patrícia Noiret Cunha in Imposto sobre o Valor Acrescentado: Anotações ao Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado e ao Regime do IVA nas Transacções Intracomunitária, Lisboa, ISG, 2004, p. 118, nota 3 ao artigo 3.º do CIVA., no sentido de que: «a exclusão só se verifica se o adquirente for ou vier a ser, pelo facto da aquisição, um sujeito passivo de imposto, sendo necessário que o adquirente continue a exercer a mesma actividade económica que vinha sendo exercida pelo transmitente, numa relação de sequência contínua e sem interrupções.
Daí a conclusão definitiva de que a transmissão operada pela Recorrida para a sociedade “D...” é subsumível na previsão do nº 4 do artigo 3º do CIVA, estando por isso excluída a sua tributação em sede de IVA.
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Quanto a saber se ocorreu preterição de formalidade legal no procedimento de inspecção, cujo relatório deu origem às liquidações impugnadas, por falta de apreciação (Pedido subsidiário formulado pela Recorrida)

Como se antolha na parte final da sentença, nela se declarou que face à procedência do fundamento de que conheceu, ficava prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas na Petição Inicial.
Dizendo a ampliação no âmbito do recurso apenas respeito aos fundamentos da ação e da defesa e não a pedidos em que a parte haja decaído, situação em que o mecanismo processual adequado para reagir seria o da interposição de recurso - quer independente, quer subordinado - deve concluir-se ser no caso em decisão admissível a ampliação do recurso nos termos do art. 636 do CPC para pretender introduzir em discussão e decisão uma questão que a impugnante havia antes suscitado.
A previsão da ampliação do recurso remete para a possibilidade do recorrido (parte vencedora ou parcialmente vencedora) prevenir a discussão de fundamentos que tenha invocado e que o tribunal não tenha julgado favoravelmente para a procedência da acção. “Caso o tribunal de recurso venha a reconhecer razão aos fundamentos invocados no recurso interposto pela parte vencida, pode revelar-se importante para a defesa dos interesses do recorrido que sejam acolhidos, no âmbito do mesmo recurso, os fundamentos que oportunamente esgrimiu e que foram objeto de resposta desfavorável.” - Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6ª ed. p. 145.
Efetivamente, a ampliação do recurso, como dispositivo colocado ao serviço dos vencedores adverte estes para a salvaguarda processual de, não lhes assistindo a necessária legitimidade para recorrer, poderiam ser surpreendidos com uma reversão na apreciação dos fundamentos que determinaram o resultado processualmente favorável, conduzindo afinal à improcedência do antes procedente, sem que tivessem tido a oportunidade de fazer valer, junto da instância superior no âmbito do conhecimento do recurso interposto pelo antagonista vencido, o seu argumentário quanto à decisão sobre matéria de facto ou de direito que se revelou contrária àquela que entende correta.
In casu, nas suas contra-alegações a Recorrida invoca, a título subsidiário e ao abrigo do disposto no nº2 do artigo 636º do CPC, a ilegalidade do procedimento inspectivo, por o primeiro relatório ter sido substituído por um outro com diversa fundamentação e que serviu de base às liquidações, que no seu entendimento viola o disposto no nº7 do artigo 60º da LGT, por não ter tido em consideração os elementos por si aportados aquando do exercício do direito de audição.
Mais concretamente, considera a Recorrida que a ATA prorrogou artificialmente por um mês o procedimento inspectivo para alterar o primeiro relatório que lhe foi notificado e sobre o qual se tinha pronunciado, tendo invocado nova fundamentação de forma a rodear os anteriores argumentos da Recorrida, o que no seu entendimento viola o princípio da boa-fé consagrado no artigo 55º da LGT.
Assim considerando, sustenta a recorrida que a ATA não tinha qualquer fundamento ao abrigo do disposto no artigo 36º, nº3, alínea a), do RCPIT para prorrogar o procedimento inspectivo, e por outro lado não apreciou os novos elementos por si apresentados, em violação do disposto no nº7 do artigo 60º da LGT.
Também a nosso ver, a recorrida carece de razão pois objectivam os autos que a ATA fundamentou de forma suficiente o alargamento do procedimento inspectivo, não estando concretizado em que termos foi violado o princípio da boa-fé se em face dos argumentos e elementos carreados pelo contribuinte aquando do exercício do seu direito de audição, não se impondo aos SIT a confirmação de tais elementos.
Na verdade, no tocante à argumentada falta de pronúncia sobre as questões suscitadas no exercício do direito de audição por parte da Recorrida, como bem denota o EPGA, o certo é que os Serviços de Inspecção não são obrigados a pronunciar-se sobre todos os argumentos aduzidos pelo contribuinte, mas apenas sobre os elementos que sejam susceptíveis de pôr em causa as conclusões do relatório.
Na realidade, a Recorrida sustenta a esse respeito que a ATA não se pronunciou «sobre os elementos relativos à imposição do Banco 1... sobre a substituição do locador/devedor, ou seja, para a Recorrida ficou demonstrado que foi o locador que impôs que fosse a sociedade “E..." a posição de locatária e não a sociedade “D...”».
No entanto, também sufragamos o entendimento de que o facto de o locador ter aceite autorizar a operação de cedência da posição de locatário apenas no caso de essa cedência ser feita para a sociedade “A...”, por esta lhe oferecer melhorias garantias de cumprimento do contrato, em nada altera a qualificação da operação em sede de IVA, não se justificando que tal factualidade fosse digna, em termos úteis, de qualquer pronúncia por parte dos Serviços de Inspecção e que tal omissão tenha virtualidade para inquinar de invalidade o procedimento inspectivo.
Significa que não se verifica a indicada preterição de formalidade legal susceptível de inquinar de invalidade o procedimento inspectivo e consequentemente os atos tributários impugnados, improcedendo o fundamento invocado pela recorrida a título subsidiário ao abrigo do disposto no nº2 do artigo 636º do CPC.
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3. Decisão

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal, em conceder parcial provimento ao recurso revogando-se a sentença e julgando-se parcialmente procedente a acção de impugnação.

Custas pelas partes em função do seu decaimento.
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Lisboa, 28 de Fevereiro de 2024. - José Gomes Correia (relator) - Anabela Ferreira Alves e Russo - Joaquim Manuel Charneca Condesso.