Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01969/13.0BELRS
Data do Acordão:06/22/2022
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário:Quando a matéria de facto assente na sentença recorrida se revelar insuficiente para conhecer da questão de direito formulada no recurso impõe-se anular aquela decisão e ordenar a baixa dos autos nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 682.º do CPC, aplicável ex vi da alínea e) do artigo 2.º do CPPT.
Nº Convencional:JSTA000P29609
Nº do Documento:SA22022062201969/13
Data de Entrada:09/20/2021
Recorrente:A......., S.A.
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

I - Relatório

1 – A………., S.A., com os sinais dos autos, impugnou no Tribunal Tributário de Lisboa as liquidações de IMI relativas aos anos de 2009, 2010 e 2011.

2 – Por sentença de 3 de Abril de 2021, o Tribunal Tributário de Lisboa julgou a impugnação parcialmente procedente e: i) absolveu a Fazenda Pública do pedido de anulação das liquidações de IMI dos anos de 2009, 2010 e 2011; ii) condenou a Fazenda Pública à anulação das liquidações de juros compensatórios dos anos de 2009, 2010 e 2011; e iii) condenou as partes em custas na proporção do decaimento

3 – Inconformada com aquela decisão, a Impugnante recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

«[…]
1. O presente recurso, com exclusivo fundamento em matéria de direito, tem por objecto a parte da douta Sentença proferida nos presentes autos em que o Tribunal a quo julgou parcialmente improcedente a impugnação e absolveu a Fazenda Pública do pedido de anulação das liquidações adicionais de IMI dos anos de 2009, 2010 e 2011 com os seguintes fundamentos:

i) apesar de ter ficado demonstrado que, nos procedimentos de liquidação em causa, a aqui Impugnante/Recorrente não foi notificada para exercer o direito de audição prévia, a preterição de tal formalidade não compromete a validade dos actos de liquidação impugnados porquanto, notificada do resultado da avaliação do prédio, a Impugnante não requereu uma segunda avaliação e, limitando-se os actos de liquidação a aplicar a taxa legal ao valor patrimonial tributário nela apurado, nada do que ela pudesse arguir em sede audição prévia poderia influenciar as liquidações;

ii) porque, para um sujeito passivo normal colocado em situação idêntica à da Impugnante/Recorrente, as liquidações são a “consequência lógica do novo VPT” apurado naquela avaliação, elas encontram-se suficientemente fundamentadas, não violando, por isso, o disposto nos art.os 268.º, n.º 3, da C.R.P., 124.º e 125.º do C.P.A. e 77.º da L.G.T..

2. Ficou definitivamente provado que a avaliação do prédio objecto das liquidações de IMI aqui impugnadas foi efectuada em 26 de Janeiro de 2013, que a Impugnante/Recorrente foi notificada do resultado daquela avaliação em 4 de Fevereiro de 2013 e que as liquidações adicionais de IMI em causa respeitam aos anos de 2009, 2010 e 2011 e foram efectuadas em 12 de Maio de 2013.

3. Decorre dos factos definitivamente provados nos presentes autos que, quer a notificação do resultado da avaliação à Impugnante/Recorrente, quer os documentos que corporizam as liquidações impugnadas, não permitem a qualquer cidadão normal saber que a avaliação feita em Janeiro de 2013 e o novo valor patrimonial tributário nela atribuído ao prédio comunicados à Impugnante/Recorrente em Fevereiro de 2013 se iriam reportar a uma qualquer data anterior.

4. Tendo ficado definitivamente provado que as liquidações de IMI sub judice se reportam a anos anteriores à data da avaliação do prédio e da atribuição do novo valor patrimonial tributário do prédio e resultando dos factos provados nos presentes autos que, nem expressamente nem por qualquer forma que pudesse perceber, foi comunicado à aqui Impugnante/Recorrente que o prédio em causa tinha o valor patrimonial tributário nela apurado desde, pelo menos, 2009, ou que, por qualquer forma, a AT iria reportar aquele novo valor ao ano de 2009, não podia ter-se entendido, como entendeu o Tribunal a quo, que as liquidações de IMI referentes aos anos de 2009, 2010 e 2011 constituíam um acto vinculado imposto pela avaliação feita em Janeiro de 2013 e de um valor patrimonial tributário fixado em Janeiro de 2013 comunicado ao seu proprietário em Fevereiro de 2013, dispensando, por isso, a sua audição prévia àquelas liquidações.

Assim,

5. Tendo a formalidade legal de notificação da aqui Impugnante/Recorrente para exercer o direito de audição prévia sido preterida nos procedimentos de liquidação em causa – expressamente reconhecida na douta Sentença recorrida – e constituindo a formalidade legal preterida uma formalidade essencial – como também se começa por reconhecer na douta Sentença recorrida – que, como se demonstrou, não se degradou em não essencial, as liquidações de IMI de 2009, 2010 e 2011 impugnadas violam o disposto nos art.os 267º, n.º 5, e 268º, n.os 3 e 4, da C.R.P., 60º, n.õs 1, 4 e 5, da L.G.T. e, como tal, tinham (e têm) de ser anuladas.

Pelo que,

Ao decidir, como decidiu o Tribunal a quo, que a formalidade legal preterida se degradou em não essencial não afectando a validade das liquidações impugnadas, decidiu mal, devendo, por isso e nesta parte, ser revogada e substituída por Acórdão que, também nesta parte, julgue procedente a impugnação apresentada e anule as liquidações de IMI impugnadas.

6. Dos factos provados na douta Sentença recorrida (em particular, dos elencados sob o números 4, 6, 7 e 8) resulta, ainda, que também não se podia ter entendido, como entendeu o Tribunal a quo, que as liquidações impugnadas referentes aos anos de 2009, 2010 e 2011 são a consequência lógica do “novo VPTdeterminado e fixado em Janeiro de 2013 e comunicado ao seu proprietário em Fevereiro de 2013 e que, sem mais, o sujeito passivo percebe e tem de perceber por que motivo um imposto referente aos anos de 2009, 2010 e 2011 é liquidado com base num valor apurado pela própria AT vários anos depois.

7. Tal como lhe foram notificadas, não é possível à Impugnante/Recorrente (nem a qualquer “sujeito passivo normal”) perceber as liquidações impugnadas, designadamente, não é possível conhecer e entender por que razão veio a Administração Tributária, em 2013, fazer as liquidações de IMI referentes aos anos de 2009, 2010 e 2011 aqui impugnadas, nem por que razão veio a Administração Tributária, em 2013 e por sua exclusiva iniciativa, fazer liquidações de IMI para os anos de 2009, 2010 e 2011 sobre um prédio que já havia sido objecto de liquidação do mesmo imposto para esses mesmos anos de 2009, 2010 e 2011, nem por que razão veio a Administração Tributária liquidar um imposto referente aos anos de 2009, 2010 e 2011 tendo por base um valor que só foi fixado em Janeiro de 2013 e comunicado à aqui Impugnante/Recorrente em Fevereiro de 2013.

8. Não podia, por isso, ter-se entendido, como entendeu o Tribunal a quo, que as liquidações impugnadas (repete-se, referentes aos anos de 2009, 2010 e 2011) são a consequência lógica do “novo VPTdeterminado e fixado em Janeiro de 2013 e comunicado ao seu proprietário em Fevereiro de 2013.

9. Os factos provados constantes da douta Sentença recorrida não permitem concluir, como concluiu o Tribunal a quo, que na “perspectiva de um sujeito passivo normal” os actos de liquidação impugnados se encontram “devida e suficientemente fundamentados”.

10. O Tribunal a quo procedeu, assim, a uma errada interpretação e aplicação do disposto nos art.os 268º, n.º 3, da C.R.P., 124º e 125º do C.P.A. e 77º da L.G.T..

[…]».


4 – Não foram produzidas contra-alegações.

5 – O Excelentíssimo Representante do MP junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de se suscitar previamente, ao abrigo do artigo 682.º, n.º 3 do CPC, aplicável ex vi do artigo 2.º, al. e) do CPPT, a questão da insuficiência da matéria de facto para conhecer do recurso.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação


1. De facto
A decisão recorrida deu como provada a seguinte factualidade concreta:
[…]
1. A Impugnante é proprietária do prédio urbano inscrito na matriz predial da freguesia de S. Sebastião da Pedreira, concelho de Lisboa, sito na Rua ……, nº ……….., daquela freguesia (cf. caderneta e certidão do registo predial a págs. 33 a 36 do PA apenso aos autos);

2. Em 21-09-2012 os serviços da AT emitiram em nome da Impugnante o ofício n.º 011780 com o seguinte teor:

«Informo que o prédio sito em Lisboa, na Rua ………., nº ………, foi eliminado da matriz por ter sido demolido e reconstruído com destino a exploração hoteleira.

Deverão entregar uma Declaração modelo 1 do IMI como prédio reconstruído.

Após submissão, deverão entregar neste Serviço de Finanças os elementos referidos no artigo 37.º do CIMI (plantas das telas finais, licença de utilização, …).»

(cf. ofício a págs. 34 do PA apenso aos autos);

3. Em 26-01-2013 foi efetuada a avaliação do prédio descrito em 1) (cf. ficha de avaliação a págs. 46 e 47 do PA apenso aos autos);

4. Em 29-01-2013 os serviços da AT emitiram em nome da Impugnante o ofício n.º 13337747 sob registo com aviso de receção n.º RY219522049PT com vista à notificação da avaliação descrita em 3) (cf. ficha de avaliação a págs. 46 e 47 do PA apenso aos autos);

5. Em 04-02-2013 foi assinado o aviso de receção emitido em nome da Impugnante sob registo n.º RY219522049PT (cf. aviso a págs. 48 do PA apenso aos autos);

6. Em 12-05-2013 os serviços da AT emitiram em nome da Impugnante a liquidação de IMI e juros compensatórios do ano de 2009 n.º 2012 710260803, relativa ao prédio descrito em 1), constando como valor de imposto € 20.688,29 e como juros € 2.335,22 (cf. liquidação a págs. 17 do ficheiro a fls. 1 a 21 do SITAF);

7. Na mesma data os serviços da AT emitiram em nome da Impugnante a liquidação de IMI e juros compensatórios do ano de 2010 n.º 2012 710260903, relativa ao prédio descrito em 1), constando como valor de imposto € 20.688,29 e como juros € 1.507,69 (cf. liquidação a págs. 18 do ficheiro a fls. 1 a 21 do SITAF);

8. Ainda na mesma data os serviços da AT emitiram em nome da Impugnante a liquidação de IMI e juros compensatórios do ano de 2010 n.º 2012 710261003, relativa ao prédio descrito em 1), constando como valor de imposto € 20.688,29 e como juros € 680,16 (cf. liquidação a págs. 19 do ficheiro a fls. 1 a 21 do SITAF);

9. Em 31-10-2013, deram os presentes autos entrada neste Tribunal (cf. registo do SITAF).

[…]».


2. Questões a decidir
O Recorrente imputa dois erros de julgamento à sentença recorrida, a saber: i) em primeiro lugar, considera que a preterição da formalidade legal podia não produzir o efeito invalidante previsto na lei, uma vez que, mesmo que tivesse sido observada a formalidade legalmente prescrita de audiência do interessado, ela não alteraria o resultado da decisão; e ii) em segundo lugar, entende que os actos de liquidação estavam suficientemente fundamentados.
Antes, porém, de conhecer destas questões, cabe analisar a questão prévia que foi suscitada pelo Ministério Público.


3. De direito
Ora, as questões a decidir no recurso, em especial o juízo sobre a relevância ou não do incumprimento do artigo 60.º da LGT na solução do caso e a falta de fundamentação dos actos de liquidação, obrigam a ter presente se foi ou não requerida uma segunda avaliação do imóvel, bem como a factualidade concreta que motivou a alteração do VPT. Algo que nos autos não foi apurado.

Em relação à primeira questão, o Tribunal a quo limita-se a afirmar genericamente o seguinte a dado passo da fundamentação da sentença: “(…) De facto, como resulta também da factualidade em 4) e 5), tendo a Impugnante sido notificada do resultado da avaliação poderia, nos termos do artigo 76.º do Código do IMI, requerer uma segunda avaliação, no prazo de 30 dias contados daquela data, sem que conste dos autos que o tenha feito. Aliás, atentando na petição da presente ação, a Impugnante nada invoca a respeito da matéria atinente ao VPT em causa que pudesse ter influenciado as liquidações através da intervenção omitida. Em suma, o juízo de prognose póstuma realizado permite-nos concluir que, no caso, não existia a mínima possibilidade de a audição da Impugnante poder influenciar o conteúdo do ato de liquidação, pelo que a preterição dessa formalidade não pode ser relevada de tal forma que comprometa a validade desse ato (…)”.

Infere-se deste excerto que o Tribunal sustenta a tese do aproveitamento do acto na circunstância de a “via de reclamação” ou “via legal de influência da decisão”, que se abria à Impugnante perante a notificação do acto de avaliação do imóvel (ponto 4 da matéria de facto assente), ser o pedido de segunda avaliação, em relação ao qual, ao invés de apurar se o mesmo foi ou não apresentado, o Tribunal a quo se limita a dar como assente que o não foi.

E o mesmo tipo de deficiência estrutural da decisão podemos assinalar à parte em que se decide a questão da alegada falta de fundamentação dos actos de liquidação. O Tribunal limita-se a afirmar de forma conclusiva, o seguinte: ”(…) Atendendo ao exposto e aos factos descritos em 3), 4) e 5), não se pode deixar de considerar que, para um sujeito passivo colocado em situação idêntica à da Impugnante, as liquidações são a consequência lógica do novo VPT resultante da avaliação do prédio. Neste desiderato, e tendo em conta a perspetiva de um sujeito passivo normal, a decisão encontra-se suficientemente fundamentada, contendo os elementos necessários suscetíveis de integrar o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pela AT para decidir naquele sentido específico e não noutro. Pelo que, nestes termos, os atos de liquidação de IMI estão devida e suficientemente fundamentados. (…)”. Ou seja, o Tribunal a quo não cuidou de verificar e fixar a factualidade respeitante ao preenchimento dos pressupostos dos artigos 9.º, n.º 1, al. c) e 10.º do CIMI, i. e., a data em que ocorreu a “alteração” do imóvel, que fundamentaria a modificação do VPT e que permitiria sustentar a legalidade dos actos de liquidação. Do excerto transcrito resulta que a sentença recorrida se limitou, uma vez mais, a dar por verificada esta factualidade.

Neste contexto, a decisão do Tribunal a quo apresenta-se desprovida dos elementos essenciais para a tomada de uma decisão fundada no direito, e o Tribunal ad quem, como bem assinala o Ex.mo Representante do Ministério Público, não dispõe dos elementos de facto suficientes para poder julgar da procedência ou improcedência dos erros de julgamento que vêm alegados no recurso.

Por isso, e porque este Tribunal só conhece de questões de direito (artigo 12.º, n.º 5 do ETAF), impõe-se, nos termos do n.º 3 do artigo 682.º do CPC, aqui aplicável ex vi do disposto no artigo 2.º, al. e) do CPPT, ordenar a baixa dos autos à primeira instância para ser ampliada da matéria de facto – desde logo quanto à questão de saber se foi ou não requerida a segunda avaliação do imóvel e a data em que se deve considerar concluída a alteração do imóvel, que justifica a actualização do VPT.

III - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em anular sentença e ordenar a baixa dos autos para, desde logo, serem supridas as respectivas deficiências na determinação da matéria de facto.

Custas pela Recorrida, com dispensa da taxa de justiça por não ter contra-alegado.

Lisboa, 22 de junho de 2022. - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (relatora) - Pedro Nuno Pinto Vergueiro – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia.