Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0665/17.4BECBR
Data do Acordão:03/06/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
Sumário:I - O recurso de revista excepcional previsto no art. 285.º do CPTT não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso.
II - A revista não pode ser admitida se o recorrente não se desincumbiu do ónus, que sobre ele recai, de identificar destacada, clara e precisamente as questões que pretende submeter a este Supremo Tribunal Administrativo e, ao invés, se limita a invocar discordância do acórdão recorrido.
III - A revista também não pode ser admitida se o recorrente não logrou demonstrar a verificação dos requisitos de admissibilidade do recurso, antes se limitando a invocar, conclusivamente e de modo alheado da concreta factualidade dada como assente pelas instâncias, a sua verificação.
Nº Convencional:JSTA000P32005
Nº do Documento:SA2202403060665/17
Recorrente:AA E OUTROS
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Apreciação preliminar da admissibilidade do recurso excepcional de revista interposto no processo n.º 665/17.4BECBR
Recorrentes: AA e BB
Recorrida: Administração Tributária e Aduaneira (AT)

1. RELATÓRIO

1.1 Os acima identificados Recorrentes, notificados do acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte em 9 de Novembro de 2023 – que negou provimento ao recurso por eles interposto da sentença por que o Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra julgou improcedente a impugnação judicial por eles deduzida contra a liquidação adicional de IRS do ano de 2015 –, apresentaram requerimento de interposição de recurso excepcional de revista, ao abrigo do disposto no art. 285.º do CPPT. Apresentaram alegações de recurso, com conclusões do seguinte teor:

«A) Está em causa a melhor aplicação e interpretação do artigo 28.º, n.º 1, alínea a) e seu n.º 2; artigo 31.º, alínea d); artigo 65.º, n.ºs 4 e 5; artigo 66.º, n.ºs 1 e 2; e artigos 150.º e 151.º, todos do CIRS, na determinação do rendimento tributável do recorrente, no âmbito da categoria B;

B) Questiona-se a qualificação tributária, relacionada com o alegado exercício de actividade de “construção civil”, e saber se a AT pode livremente, e sem ouvir o contribuinte, mudar os elementos declarados, sempre que entenda efectuar correcções as próprias declarações, sobretudo vinculando o sujeito passivo ao regime simplificado de tributação, sem que este exerça qualquer actividade industrial, atendendo a que as declarações dos contribuintes beneficiam de presunção legal de veracidade (cfr. art. 75.º da LGT), não obstante o legislador admitir a sua elisão , através de produção de prova, em sentido contrário, por parte da AT, o que não fez.

C) A estabilização desta interpretação jurídica é fundamental na coexistência da sociedade civil, sabendo-se que servirá para muitos outros contribuintes, prestadores de serviços, que poderão vir a ser confrontados com alterações aos elementos constantes das suas declarações, sempre que a AT entenda existirem divergências na qualificação dos actos, sem acautelar o contraditório;

D) Tendo em vista a paz social e estabilização na aplicação e interpretação dos normativos supracitados, recorre-se ao RECURSO DE REVISTA, para que se proceda a uma melhor apreciação do que se estabelece nos artigos 28.º, n.º 1, alínea a), e seu n.º 2 ; artigo 31.º, n.º 1, alínea d); artigo 65.º, n.ºs 4 e 5 ; artigo 66.º, n.ºs 1 e 2, e artigos 150.º e 151.º, todos do CIRS, na determinação do rendimento tributável dos contribuintes, no âmbito da categoria B , estabelecida no artigo 1.º do mesmo diploma.


Do erro nos pressupostos de Direito

E) A matéria assente na douta decisão recorrida não leva às consequências plasmadas na mesma, nomeadamente no que concerne à conclusão de que o recorrente AA … exerceu no ano de 2015 a actividade de construção civil;

F) No ano de 2015, o modo de vida do recorrente, foi o de trabalhador por conta de outrem nas A... (facto dado como provado 30, a fls. 37 do douto Acórdão recorrido);

G) O recorrente AA não exerceu no ano de 2015 qualquer actividade de construção civil, sendo que para concretizar uma prática mercantil, seria necessário que o recorrente dispusesse da qualidade de comerciante – artigo 13.º do Código Comercial –, e possuísse uma organização virada para a produção e circulação de bens, nomeadamente com a posse de terrenos, tecnologia, capital, matéria-prima, mão de obra e escritório para cimentar a organização, e, em consequência, edificasse imóveis e os alienasse no mesmo ano fiscal, razão pela qual não podem concluir os recorrentes que tenha praticado actos de comércio;

H) Não se encontrando o AA cadastrado no registo a que se refere o artigo 150.º e 151.º do CIRS, pela actividade de construção civil (dito de modo mais técnico “Construção e Reparação de Edifícios” – CAE 045212), porque não exerceu aquela actividade, carece de fundamento a alegação de que o impugnante se encontra registado no Regime Simplificado, nos termos e para os efeitos dos artigos 28.º, n.º 1.º, 31.º, 150.º e 151.º do CIRS, bem se sabendo que o recorrente está cadastrado em tal regime, mas pela actividade residual de prestação de serviços de engenharia, em tempos livres - Código 1003 da Tabela referida no artigo 151.º do CIRS, mas não estando, nem nunca esteve, pela alegada actividade de construção civil (que enquanto tal nunca exerceu), cuja classificação é feita de acordo com a Classificação das Actividades Económicas Portuguesas por Ramos de Actividade (CAE) do Instituto Nacional de Estatística;

I) A Autoridade Tributária considerou o valor de € 165.360,68, resultante do negócio titulado pela escritura de DAÇÃO EM CUMPRIMENTO, ocorrido em 16 de Janeiro de 2015, como rendimento da categoria B, inserido nas regras do artigo 28.º do CIRS - Regime Simplificado de tributação, sendo tal tributação uma ilegalidade absoluta, face ao direito aplicável aos factos, visto que o recorrente não estava, nem nunca esteve , registado no cadastro fiscal pela actividade de construção civil, a que se refere o registo do artigo 150.º do CIRS, bem se sabendo que tal registo, no exercício de tal actividade, é condição sine qua non para o enquadramento em IR, ao mesmo tempo que sem tal registo a AT não pode, sem mais, tributar o impetrante da forma que o fez, razões pelas quais a AT violou o comando dos artigos 28.º, n.º 1, alínea a) , e artigos 31.º e 150.º todos do CIRS;

J) O negócio titulado pela DAÇÃO EM CUMPRIMENTO, operado em 16 de Janeiro de 2015 com a Banco 1..., constitui, simplesmente, um acto de gestão do seu património privado, na medida em que, propondo-se construir uma habitação para residência permanente do seu agregado familiar (edifício em fase de construção), o encarecimento dos elevados custos de construção, e o exagero dos juros exigidos por aquela entidade bancária, tornaram incomportável prosseguir com a construção da moradia, dada a fraca capacidade económica e financeira para concluir a obra, obra esta que não converte o recorrente em empresário industrial ou comercial;

K) A alegada vantagem patrimonial, decorrente do relatório da inspecção tributária, consiste na extinção da dívida, e, por isso, é o valor do instituto da Dação em Cumprimento (€ 165.360,68) que representa a contraprestação à alienação do imóvel, e, em consequência, é este o valor a considerar como valor de realização, para efeitos da aplicação do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do CIRS, sendo certo que do negócio não resultou um qualquer rendimento, antes resultou, apenas, num decréscimo do seu passivo;

L) O valor do negócio titulado pela – Dação em Cumprimento –, de 16 de Janeiro de 2015, consta da declaração de rendimentos do IRS de 2015, por enquadramento na categoria G – Mais Valias – artigo 9.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a), ambos do CIRS, visto que tal figura jurídica, enquanto causa de extinção de obrigações, se define como uma alienação onerosa do direito real de propriedade sobre bem imóvel, nos termos do artigo 837.º do Código Civil, para efeitos do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do CIRS (cfr. Ac. do STA de 11-01-2017, no proc. 01622/15 – Doct. 20 dos autos, e sobre o qual o douto Acórdão recorrido desconsiderou, por omissão);

M) A Autoridade Tributária, presumindo o exercício, por parte do recorrente – AA –, de uma actividade comercial/Industrial, considerou, indevidamente, existir uma vantagem patrimonial, advinda do negócio titulado pela Dação em Cumprimento, a ser tributado pela categoria B, em sede do IRS/2015, pelo que, face aos factos, aplicou e interpretou mal, os artigos 28.º, 31.º, 150.º e 151.º, todos do CIRS, pois demonstrado está, que a alegada vantagem patrimonial não se inclui em nenhum dos tipos de rendimento ali citados (cfr. também o artigo 1.º, alínea e) do presente recurso);

N) A Autoridade Tributária, violou o comando do artigo 31.º, n.º 1, alínea d) do CIRS, consequência da errada interpretação e aplicação dos normativos – artigo 3.º, n.º 1, alínea a) ; artigo 28.º, n.º 1, alínea a); artigo 112.º, n.º 2; e artigos 150.º e 151.º, todos do CIRS, porque, contemplando tal alínea cinco (5) tipos de rendimento diferentes, com origens diversas, não indicou, e não fundamentou, em qual das situações se revê, OU SEJA, para a situação que ficcionou, inclui-a em todas as situações que o normativo engloba, sendo que devia fundamentar e interpretar cada uma daquelas situações, para clarificar o seu entendimento, e, não o fazendo, torna patente uma norma de tal modo genérica que não esclarece qual a concreta regra ou quadro legal bem determinado que impunha a sua actuação (cfr. artigo 5.º do presente recurso jurisdicional).

O) É inaplicável, IN CASU, o artigo 31.º do CIRS, nomeadamente a sua alínea d), uma vez que o recorrente AA, nunca esteve enquadrado no regime simplificado pela actividade de “construção civil” (artigo 28.º, n.º 1 do CIRS), mas tão só pela actividade de “prestador de serviços de engenharia” – Código 1003 da Tabela, a que se refere o artigo 151.º do CIRS.


Da Preterição de formalidades legais/essenciais

P) A AT alterou os elementos declarados pelos recorrentes na sua declaração do IRS/2015, passando a matéria colectável de € 29.804,15 para € 213.542,58, sem estar determinado no procedimento a prática do acto dessa alteração, nos termos do artigo 65.º, n.ºs 4 e 5 do CIRS, seja pelo órgão competente para o efeito, IN CASU, o Sr. Director de Finanças de Coimbra, seja pela alegada Directora de Finanças, por delegação, sendo certo que, no plano de delegação de competências, não consta provado, e devia constar, no Relatório Inspectivo, que:

a) O acto alegado de delegação de poderes, foi conferido pela existência de elevado número de actos, no mesmo sentido, a praticar, pois somente neste caso, tal é possível (cfr. artigo 65.º, n.º 5 do CIRS, in fine);

b) Constem, para o acto de delegação de competências, os requisitos exigidos no artigo 47.º, n.º 1 do CPA, aplicável ex vi do artigo 2.º, alínea c) da LGT; artigo 2.º, alínea d) do CPPT; e artigo 4.º, alínea e) do RCPIT, razões pelas quais se torna nulo o acto administrativo praticado nos termos do artigo 161.º, n.º 2, alínea l) do CPA;

c) A AT violou, assim, o artigo 65.º, n.ºs 4 e 5 do CIRS, bem como o artigo 47.º, n.º 1 do CPA.

Q) A Autoridade Tributária não notificou, a operada alteração dos elementos declarados pelos contribuintes na sua declaração do IRS/2015, notificação exigida no artigo 66.º, n.ºs 1 e 2 do CIRS, sendo certo que, a falta da notificação influenciou o acto final do procedimento, razão pela qual se tenha de qualificar tal formalidade de essencial (cfr. Jorge Lopes de Sousa, in CPPT, 6.ª Ed.- 2011- II Vol., págs. 125, citado no artigo 58.º das alegações de recurso, e sobre o qual o douto Acórdão recorrido, desconsiderou, por omissão).


Da Falta / Insuficiência de Fundamentação

Em sede do procedimento


R) A AT, considerando o exercício da actividade de construção civil pelo recorrente AA, limita-se, por um lado, a utilizar expressões genéricas e vagas, traduzidas em presunções, de que são exemplos as referidas nas págs. 4/14 e 5/14 do RIT (ver artigos 75.º a 79.º da p.i.), e, por outro, presume existir vantagem patrimonial, resultando do contrato de Dação em Cumprimento, celebrado entre o AA e a Banco 1... – (cfr. pág. 7/14 do RIT, artigos 34.º, a 38.º da p.i., e art. 70.º do recurso jurisdicional), sendo certo que o acto tributário não está fundamentado com as disposições legais exigidas pelo artigo 77.º, n.º 2 da LGT;

S) Como assim, os impugnantes não compreenderam a liquidação adicional do IRS/2015, por isso, a impugnaram, pois, se, por um lado, o AA não exerceu naquele ano a actividade de construção Civil, (cfr. artigos 25.º,26.º,27.º, 96.º , 97.º e 98.º da p.i.), por outro, a Banco 1..., para extinção da dívida do recorrente, aceitou receber, através da Dação em Cumprimento, a quota parte que o mutuário detinha no prédio urbano (terreno para construção, onde estava em andamento a edificação de uma moradia para a sua habitação própria e permanente) inscrito sob o artigo ...85 da freguesia ..., reconhecendo-lhe extinta a dívida, dela dando total e livre quitação para todos os efeitos legais, sendo despicienda a conclusão da Autoridade Tributária (cfr. pág. 7/14 do RIT), quando diz, a dado passo
… que a B..., Lda, por ter entregue à Banco 1... prédios de valor superior à sua dívida de € 350.020,35, concretamente do valor de € 515.381,34, para extinção da sua dívida, pagou parte da dívida do AA”,
pois trata-se de narrativa, também baseada em presunções, sem valor probatório, nos termos do artigo 76.º, n.º 1 da LGT e artigo 115.º, n.º 2 do CPPT.

T) Nos presentes autos impugnatórios, vieram os recorrentes invocar a invalidade da liquidação adicional do IRS/2015 por preterição de formalidades legais/essenciais, por violação do artigo 65.º, n.ºs 4 e 5 do CIRS, uma vez que a AT alterou os elementos declarativos dos seus rendimentos, sem estar praticado, no procedimento, o acto de alteração de tais elementos, alteração da exclusiva competência , IN CASU, do Director de Finanças de Coimbra, alteração que não foi notificada aos contribuintes, exigida no artigo 66.º, n.ºs 1 e 2 do CIRS, razões pelas quais se está em presença de um caso de inexistência jurídica, cujo regime aplicável é o de nulidade previsto no artigo 162.º, n.ºs 1 e 2 do CPA, aplicável ex vi do artigo 2.º, alínea c) da LGT; artigo 2.º, alínea d) do CPPT; e artigo 4.º, alínea e) do RCPIT, que se reclama.

U) A tese defendida pelo Tribunal recorrido viola, manifestamente, o artigo 268.º, n.º 3 da CRP, o artigo 77.º da LGT, e os artigos 65.º e 66.º, ambos do CIRS, incorrendo no erro de interpretação e aplicação da lei, no que diz respeito ao legal dever de fundamentação dos actos tributários e das decisões procedimentais.


Em sede da Liquidação Adicional

V) O acto tributário impugnado – Liquidação Adicional do IRS/2015 – carece da adequada fundamentação, nos termos dos artigos 268.º, n.º 3 da CRP, artigo 77.º, n.ºs 1 da LGT, pois a mesma não foi acompanhada de qualquer fundamentação, concreta, limitando-se a informar de que tinha efectuado uma liquidação adicional do IRS/2015, como explicada não está a aplicação, da taxa de 4%, relativa a juros compensatórios (não consta o dispositivo legal que fixa esta taxa, já que os normativos referidos não se referem ao “ quantum” da taxa), e, também porque incide sobre o valor de € 86.057,65 que se desconhece donde resulta, quando a matéria colectável que serviu para a tributação foi de € 213.542,58.

TERMOS EM QUE, e nos melhores de direito, sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, conhecidos os fundamentos do presente Recurso, deve, de acordo com as conclusões expostas, a decisão sob recurso ser eliminada da ordem jurídica, razões pelas quais se pede ao Colendo Supremo Tribunal Administrativo que a revogue, concedendo provimento ao recurso, julgando procedente a impugnação, e anular o acto de liquidação impugnado».

1.2 A Recorrida não contra-alegou.

1.3 O Desembargador relator no Tribunal Central Administrativo Norte ordenou a remessa dos autos ao Supremo Tribunal Administrativo

1.4 Recebidos neste Supremo Tribunal, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral-Adjunto pronunciou-se no sentido de que «[n]ão compete ao Ministério Público, nesta fase, pronunciar-se quanto à admissibilidade ou não do Recurso de Revista, mas apenas quanto ao seu mérito e só no caso de este ser admitido».

1.5 Cumpre apreciar, preliminar e sumariamente, da admissibilidade do recurso ao abrigo do disposto no n.º 6 do art. 285.º do CPPT.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DOS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

2.1.1 Em princípio, as decisões proferidas em 2.ª instância pelos tribunais centrais administrativos não são susceptíveis de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo; mas, excepcionalmente, tais decisões podem ser objecto de recurso de revista em duas hipóteses: i) quando estiver em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, assuma uma importância fundamental; ou ii) quando a admissão da revista for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito (cfr. art. 285.º, n.º 1, do CPPT).
Como decorre do próprio texto legal e a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem repetidamente sublinhado, trata-se de um recurso excepcional, como de resto o legislador cuidou de sublinhar na Exposição de Motivos das Propostas de Lei n.ºs 92/VIII e 93/VIII, considerando-o como uma «válvula de segurança do sistema», que só deve ter lugar naqueles precisos termos.

2.1.2 Como a jurisprudência tem vindo a salientar, incumbe ao recorrente alegar e demonstrar essa excepcionalidade, que a questão que coloca ao Supremo Tribunal Administrativo assume uma relevância jurídica ou social de importância fundamental ou que o recurso é claramente necessário para uma melhor aplicação do direito. Ou seja, em ordem à admissão do recurso de revista, a lei não se satisfaz com a invocação da existência de erro de julgamento no acórdão recorrido, devendo o recorrente alegar e demonstrar que se verificam os referidos requisitos de admissibilidade da revista (cf. art. 144.º, n.º 2, do Código de Processo dos Tribunais Administrativos e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável).

2.1.3 Na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória – nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema» (Cf., por todos, o acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 2 de Abril de 2014, proferido no processo n.º 1853/13, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/aa70d808c531e1d580257cb3003b66fc.).

2.1.4 Cumpre também ter presente que, como decorre do n.º 4 do art. 285.º do CPPT, «[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova».

2.1.5 Convém ainda ter presente que a jurisprudência tem vindo a afirmar, uniforme e repetidamente, que, atento que, atento o carácter extraordinário da revista excepcional prevista no art. 285.º do CPPT (e no art. 150.º do CPTA), não pode este recurso ser utilizado para arguir nulidades do acórdão recorrido, devendo tais nulidades ser arguidas perante o tribunal recorrido mediante reclamação, nos termos do art. 615.º, n.º 4, do CPC (Vide, a título de exemplo, os seguintes acórdãos da formação do n.º 6 do art. 285.º do CPPT:
- de 3 de Junho de 2020, proferido no processo com o n.º 343/14.6BEPRT-B, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/eb157c30c16c267d802585810030f0f8;
- de 1 de Julho de 2020, proferido no processo com o n.º 1460/10.7BELRA, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/de1cbacc46f1fa58802585a0004d2a45;
- de 16 de Fevereiro de 2022, proferido no processo com o n.º 39/11.0BEALM, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/9ec1ef94cc133cc1802587ec00449c1a.).

2.1.6 Referidos que ficaram os pressupostos da admissibilidade da revista excepcional e o seu âmbito abstracto, passemos a verificar, preliminar e sumariamente, se o recurso pode ser admitido (cfr. art. 285.º, n.ºs 1 e 6, do CPPT).

2.2 O CASO SUB JUDICE

2.2.1 No caso, apesar de os Recorrentes não terem identificado inequivocamente qual dos requisitos da admissibilidade da revista excepcional invocam em ordem a que este Supremo Tribunal conheça da revista, certo é que invocam que «por um lado, está em causa a apreciação de questões que pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental, e, por outro, a admissão do recurso é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito» e, depois de enunciarem como «questão principal que se discute no processo» a da «qualificação tributária, relacionada com a alegada “actividade de construção civil” e saber se a AT pode livremente, e sem ouvir o contribuinte, mudar os elementos declarados sempre que entenda efectuar correcções às próprias declarações, sobretudo atendendo a que as declarações dos contribuintes beneficiam de presunção legal de veracidade ( cfr. art. 75.º da LGT ), não obstante o legislador admitir a sua elisão, através da produção de prova, em sentido contrário, por parte da AT, o que esta não fez» formularam duas questões; a saber:
«- A Autoridade Tributária poderá vincular o sujeito passivo ao regime simplificado de tributação, caso este não exerça a “actividade de construção civil”?
- E pode a AT livremente taxar um hipotético rendimento da suposta actividade de construção civil, pela aplicação do coeficiente 0,95, referido no artigo 31.º, n.º 1, alínea d) do CIRS, sem oferecer o contraditório ao contribuinte, bem se sabendo que a citada alínea d) do normativo, tributa por aquela taxa cinco (5) tipos de rendimento, onde não está inserida a “actividade de construção civil”, em violação do princípio legal da presunção de veracidade da declaração de rendimentos?»
Alegam ainda os Recorrentes que «[a] estabilização desta interpretação jurídica assume relevância fulcral na sociedade civil, visto que, sabendo-se que o país tem muitos milhares, para não dizer milhões, de profissionais prestadores de serviços, associados a múltiplas actividades, poderão vir a ser confrontados com alterações, aos elementos por si declarados, protagonizados pela AT, no âmbito da correcção aos elementos declarados pelos contribuintes, sempre que esta entenda existirem divergências na qualificação dos actos, mas sem acautelar previamente o contraditório dos contribuintes» e que «[p]ara consagrar paz social e estabilização na aplicação e interpretação dos normativos supracitados, recorre-se ao RECURSO DE REVISTA, para proceder a uma melhor apreciação do estabelecido nos artigos 28.º, n.º 1, alínea a), e seu n.º 2; artigo 31.º, nomeadamente a sua alínea d), artigo 65.º, n.ºs 4 e 5, artigo 66.º, n.ºs 1 e 2, e artigos 150.º e 151.º, todos do CIRS, na determinação do rendimento tributável dos contribuintes, no âmbito da categoria B».
Se bem a interpretamos esta alegação, afigura-se-nos que os Recorrentes entendem, por um lado, que a AT errou – assim como as instâncias erraram ao não terem anulado a liquidação impugnada – quando considerou que o Recorrente marido obteve rendimentos que derivam da actividade de “construção civil”, que considerou também ter sido por ele exercida; por outro lado, entendem que esse enquadramento da actividade foi efectuado pela AT “sem ouvir o contribuinte” e sem que a AT tenha logrado elidir a presunção de veracidade das declarações dos contribuintes, consagrada no art. 75.º da Lei Geral Tributária (LGT).

2.2.2 Em face desta alegação, podemos concluir que os Recorrentes não se desincumbiram do ónus que sobre eles recaía, de identificar clara e precisamente as questões que pretendem submeter a este Supremo Tribunal Administrativo. Para cumprir esse ónus, não basta ao Recorrente, como fez, indicar os motivos por que discorda do acórdão recorrido, os erros concretos que assaca a essa decisão; exige-se-lhe ainda que identifique, precisamente, a questão ou questões que pretende erigir como objecto da revista excepcional (e, depois, indicar em concreto as razões pelas quais, em relação a essas questões, se impõe a intervenção deste Supremo Tribunal).
Ora, os Recorrentes não lograram proceder a essa identificação de modo adequado, antes reportam as questões que pretendem ver reapreciadas por este Supremo Tribunal aos concretos erros de julgamento que assacam ao julgamento efectuado pelas instâncias.
Tanto basta para a revista não seja admitida, como decidiremos a final.

2.2.3 Sem prejuízo do que deixámos dito, permitimo-nos ainda salientar que os Recorrentes, salvo o devido respeito, não respeitam o âmbito do recurso de revista e procedem como se este recurso – que tem natureza excepcional e cujos requisitos de admissibilidade estão legalmente delimitados – fosse mais um grau de jurisdição indiscriminadamente posto à disposição das partes.
Só esse incorrecto entendimento do âmbito da revista excepcional prevista no art. 285.º do CPPT explica que os Recorrentes se tenham permitido no presente recurso, não só pôr em causa todo o julgamento efectuado pelo Tribunal Central Administrativo Norte, como inclusive pôr em causa a factualidade fixada pelas instâncias e os juízos de facto formulados com base nessa factualidade e, ademais, arguir nulidades do acórdão recorrido.
O que os Recorrentes pretendem não é senão que o Supremo Tribunal Administrativo sindique se a liquidação impugnada padece i) de erro sobre os pressupostos de facto, ii) erro sobre os pressupostos de direito, iii) de vício de forma por preterição do direito de audiência prévia e iv) de vício de forma por falta de fundamentação.
No entanto, apesar da invocação de que «está em causa a apreciação de questões que pela sua relevância jurídica ou social, se revestem de importância fundamental» e de que «a admissão do recurso é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito», não concretizaram, como se lhes impunha, essas afirmações conclusivas, com a alegação dos factos que poderiam integrar a invocada relevância jurídica ou social ou a necessidade da admissão do recurso para melhor aplicação do direito. A este desígnio não servem as afirmação, também elas conclusivas, de que «[a] estabilização desta interpretação jurídica assume relevância fulcral na sociedade civil, visto que, sabendo-se que o país tem muitos milhares, para não dizer milhões, de profissionais prestadores de serviços, associados a múltiplas actividades, poderão vir a ser confrontados com alterações, aos elementos por si declarados, protagonizados pela AT, no âmbito da correcção aos elementos declarados pelos contribuintes, sempre que esta entenda existirem divergências na qualificação dos actos, mas sem acautelar previamente o contraditório dos contribuintes» e que a admissão da revista se justifica em ordem a «consagrar a paz social e estabilização na aplicação e interpretação dos normativos supracitados».
Na verdade, tais afirmações, por um lado, desprezam o julgamento que as instâncias efectuaram da matéria de facto e assentam em pressupostos factuais que não foram os por elas estabelecidos e, por outro lado, não servem à demonstração dos requisitos especiais de admissibilidade da revista. Em suma, a revista também não poderia ser admitida por os Recorrentes não terem alegado factos susceptíveis de integrar os requisitos do n.º 1 do art. 285.º do CPPT.

2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - O recurso de revista excepcional previsto no art. 285.º do CPTT não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso.

II - A revista não pode ser admitida se o recorrente não se desincumbiu do ónus, que sobre ele recai, de identificar destacada, clara e precisamente as questões que pretende submeter a este Supremo Tribunal Administrativo e, ao invés, se limita a invocar discordância do acórdão recorrido.

III - A revista também não pode ser admitida se o recorrente não logrou demonstrar a verificação dos requisitos de admissibilidade do recurso, antes se limitando a invocar, conclusivamente e de modo alheado da concreta factualidade dada como assente pelas instâncias, a sua verificação.


* * *

3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência da formação prevista no n.º 6 do art. 285.º do CPPT, em não admitir o presente recurso.

Custas pelos Recorrentes.


*

Lisboa, 6 de Março de 2024. – Francisco Rothes (relator) – Aragão Seia – Isabel Marques da Silva.