Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0140/14.9BEMDL
Data do Acordão:02/21/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:FONSECA DA PAZ
Descritores:APRECIAÇÃO PRELIMINAR
CAUSA PREJUDICIAL
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Sumário: É de admitir a revista interposta de acórdão que revogou a sentença que, com fundamento na existência de nexo de prejudicialidade, determinara a suspensão da instância, quando se suscitam legítimas dúvidas sobre o acerto da decisão recorrida e, dado o elevado número de acções pendentes na jurisdição administrativa onde se discutem questões idênticas – em vários casos decididos pelas instâncias de forma dissonante – é notória a capacidade de expansão da controvérsia a outros casos similares.
Nº Convencional:JSTA000P31930
Nº do Documento:SA1202402210140/14
Recorrente:MUNICÍPIO DE BOTICAS
Recorrido 1:A..., SA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA FORMAÇÃO DE APRECIAÇÃO PRELIMINAR DA SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:

1. “A..., S.A.” que, por força do art.º 4.°, n.º 3, do DL n.º 93/2015, de 29/5, sucedeu às “B..., S.A.”, intentou, no TAF, acção administrativa comum, contra o MUNICÍPIO DE BOTICAS, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 241.592,97, correspondente ao montante das facturas não liquidadas nºs. ...46 e ...47 pela prestação de serviços de abastecimento de água e recolha e tratamento de efluentes, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento.
Por despacho de 22/10/2021, o Sr. Juiz do TAF determinou que a estes autos fosse apensado o processo n.º 434/15.6BEMDL.
O R., através de requerimento de 16/3/2022, solicitou que, ao abrigo do art.º 272.º, n.º 1, do CPC, se determinasse a suspensão da instância até ao trânsito em julgado da decisão final a proferir no processo n.º 279/13.8BEMDL.
Esse requerimento foi deferido por despacho datado de 30/3/2022, com fundamento na verificação de causa prejudicial.
Deste despacho, a A. apelou para o TCA-Norte, o qual, por acórdão de 03/11/2023, concedeu provimento ao recurso, revogou a decisão recorrida e determinou a baixa dos autos ao TAF para prosseguimento dos mesmos.
É deste acórdão que o R. vem pedir a admissão do recurso de revista.

2. Tem-se em atenção a matéria de facto considerada pelo acórdão recorrido.

3. O art.º 150.º, n.º 1, do CPTA, prevê que das decisões proferidas em 2.a instância pelos tribunais centrais administrativos possa haver excepcionalmente revista para o STA “quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental” ou “quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”.
Como decorre do texto legal e tem sido reiteradamente sublinhado pela jurisprudência deste STA, está-se perante um recurso excepcional, só admissível nos estritos limites fixados pelo citado art.º 150.º, n.º 1, que, conforme realçou o legislador na Exposição de Motivos das Propostas de Lei nºs. 92/VIII e 93/VIII, corresponde a uma “válvula de segurança do sistema” que apenas pode ser accionada naqueles precisos termos.
O TAF, para determinar a suspensão da instância, considerou que havia um nexo de prejudicialidade entre o processo n.º 279/13.8BEMDL - onde a mesma A. pedia a condenação do Município de Boticas a pagar-lhe a quantia de € 169.313,74 referente às facturas não liquidadas com os n°s. ...55 e ...69, datadas de 29/4/2012, acrescida dos respectivos juros de mora, relativas a serviços de saneamento e de fornecimento de água - e os presentes autos, dado que a sua decisão poderia impor uma definição da relação jurídica entre as partes, relativamente à exigibilidade dos “valores mínimos”, a qual tinha a virtualidade de condicionar a decisão da presente causa considerando que o objecto de ambas tinha o mesmo enquadramento legal e obrigacional.
Entendimento contrário foi sustentado pelo acórdão recorrido, com base na seguinte fundamentação:
“(…).
22. Neste enquadramento, não se nos prefigura existir a invocada prejudicialidade, posto que a eventual procedência da ação n°. 279/13.8BEMDL não destruirá o fundamento ou a razão de ser da presente ação.
23. De facto, a eventual procedência da ação n°. 279/13 terá reflexo ao nível da eventual extinção das obrigações do Réu em relação à Autora no período temporal reportado ao mês de fevereiro de 2012.
24. Já a eventual procedência da presente ação terá reflexo ao nível da eventual extinção das obrigações do Réu em relação à Autora no período temporal reportado ao mês de janeiro de 2013.
25. Trata-se de obrigações distintas, sendo que a eventual satisfação e/ou das obrigações reportadas a fevereiro de 2012 não impede o incumprimento das obrigações reportadas a janeiro de 2013.
26. Neste entendimento, a decisão a proferir na ação cível não se enquadra no conceito de causa prejudicial a que alude o art. 272° n.º 1 do CPC.
27. Com efeito, uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão aí proferida possa destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda, não podendo o tribunal ordenar a suspensão da instância senão nos termos em que a lei a prevê.
28. Conforme ressuma grandemente do que se vem de expor, não se descortina qualquer capacidade destrutiva da razão de ser da presente ação com a prolação da decisão judicial no âmbito do processo n°. 279/13, o que nos transporta para evidência da falta de prejudicialidade entre ambos os processos.
29. Não se ignora o eventual “conforto” " no tratamento simultâneo de ambos os processos.
30. Porém, tal “conforto’’ releva[rá] apenas ao nível da eventual apensação de processos e não ao nível da ocorrência de eventual motivo justificado para a suspensão da presente instância”.
Entendeu-se, pois, que, estando em causa em ambos os processos o pagamento de facturas respeitantes a períodos temporais distintos, não ocorria o invocado nexo de prejudicialidade.
O R. justifica a admissão da revista com a relevância jurídica e social das questões a apreciar - face à dificuldade de aplicação prática do conceito de nexo de prejudicialidade, demonstrada pela decisão divergente das instâncias e por o próprio TCA-Norte já ter decidido em sentido oposto do agora perfilhado, por a utilidade da decisão extravasar o caso concreto e as partes envolvidas, sendo susceptível de relevar para um número indefinido de casos semelhantes, muitos já pendentes nos tribunais, e por estar em causa matéria particularmente sensível em termos de impacto comunitário - e com a necessidade de se proceder a uma melhor aplicação do direito, imputando ao acórdão recorrido erro de julgamento, por os fundamentos da inexigibilidade dos valores peticionados pela A. serem transversais, afectando toda a relação jurídica material controvertida, que é a mesma e uma só, e porque, de qualquer modo, sempre se deveria decretar a suspensão da instância com fundamento em “outro motivo justificado”, a que alude a parte final do citado art.º 272.º, n.º 1.

Enquanto no processo n.º 279/13.8BEMDL é pedido o pagamento dos “valores mínimos garantidos” com referência ao ano de 2011, nos termos das cláusulas 3.ª, dos contratos de fornecimento e de recolha de efluentes celebrados entre as partes e 16.a, do contrato de concessão celebrado entre a A. e o Estado Português, nos presentes autos é peticionado também o pagamento dos “valores mínimos garantidos”, embora com referência aos anos de 2012 e 2014.
Entendendo-se que uma causa é prejudicial de outra quando a decisão da primeira pode destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda, suscitam-se legítimas dúvidas sobre o acerto do acórdão recorrido.
Por outro lado, dado o grande número de acções pendentes na jurisdição administrativa onde se discutem questões idênticas - em vários casos decididas de forma dissonante pelas instâncias - é notória a capacidade de expansão da controvérsia a outros casos similares.
Convém, pois, que o Supremo reanalise o caso que suscita interrogações jurídicas e que, tendo potencialidade de repetição, reclama uma clarificação de directrizes.

4. Pelo exposto, acordam em admitir a revista.
Sem custas.

Lisboa, 21 de Fevereiro de 2024. – Fonseca da Paz (relator) - Teresa de Sousa – José Veloso.