Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0406/13
Data do Acordão:10/04/2017
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:IRC
AUDIÊNCIA PRÉVIA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Sumário:I - O n.º 3 do art. 60.º da LGT apenas dispensa a audiência prevista na alínea a) do n.º 1 do mesmo artigo, ou seja, a que é anterior ao acto de liquidação, e não pode servir de fundamento à dispensa da audiência antes da decisão do recurso hierárquico, que deve sempre ter lugar, a menos que a decisão a proferir seja totalmente favorável ao interessado (cfr. alínea a) do n.º 2 do art. 60.º da LGT) ou que seja no mesmo sentido da decisão da reclamação graciosa e não haja novos factos ou questões jurídicas a considerar.
II - O grau de fundamentação exigível para que se considere cumprido o respectivo dever (previsto nos arts. 268.º, n.º 3, da CRP, no art. 77.º da LGT e no art. 123.º do CPA, este na redacção aplicável) está directamente relacionado com o grau de litigiosidade existente, isto é, com a divergência existente entre a posição da administração e do contribuinte.
III - Não pode considerar-se suficientemente fundamentada (equivalendo a insuficiência a falta de fundamentação, nos termos do art. 125.º do CPA) a correcção, e consequente liquidação, operada por a AT ter considerado que o sujeito passivo não podia ter deixado de efectuar a retenção do imposto quando do pagamento dos juros devidos pelos empréstimos obrigacionistas que emitiu sem que tivesse prova da “qualidade de não residente” dos beneficiários se, como única fundamentação de direito, e depois do sujeito passivo ter invocado que não havia disposição legal que lhe impusesse essa prova, ao invés de indicar a norma em causa, a AT se limitou a invocar, enigmática e sinteticamente, que, porque o contribuinte «não fez qualquer prova da “qualidade de não residente”», «não se poderá aplicar o regime fiscal previsto nas Convenções para Evitar a Dupla Tributação» (regime que ninguém invocou e nem sequer estava em causa).
IV - Ainda que ulteriormente, aquando do indeferimento da reclamação graciosa contra aquela liquidação, a AT tenha vindo a indicar as normas que, a seu ver, impunham aquela prova, essa fundamentação não pode ser usada para aferir da validade formal do acto impugnado, uma vez que a nossa ordem jurídica não confere relevância à fundamentação a posteriori.
Nº Convencional:JSTA000P22341
Nº do Documento:SA2201710040406
Data de Entrada:03/11/2013
Recorrente:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:BANCO A..., S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de impugnação judicial com o n.º 1497/08.6BEPRT

1. RELATÓRIO

1.1 A Fazenda Pública recorreu para o Tribunal Central Administrativo Norte da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que, julgando procedente a impugnação judicial aí deduzida pelo “Banco A…………, S.A.” (a seguir Contribuinte, Impugnante ou Recorrido), na sequência do indeferimento parcial do recurso hierárquico, intentado do indeferimento da reclamação graciosa, anulou a liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), referente ao ano de 2000, no montante global de € 1.749.613.30, e ordenou «[...] a substituição por nova liquidação, que não considere o valor de € 1.753.231,80, relativa a juros vencidos, e o valor de € 194.083,83, na parte do valor imputável a retenções na fonte sobre rendimentos pagos à B…………».

1.2 O recurso foi admitido, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e a Recorrente apresentou as alegações de recurso, que resumiu em conclusões do seguinte teor (Porque usamos o itálico nas transcrições, os excertos que estavam em itálico no original surgirão, aqui como adiante, em tipo normal.-(As notas que no original estavam em rodapé serão transcritas no texto, entre parêntesis rectos.):

«I. Vem o presente recurso interposto da douta Sentença que julgou procedente a impugnação deduzida contra a liquidação adicional de IRC, referente ao exercício económico do ano de 2000, no montante global de € 1.749.613.30, na sequência do indeferimento parcial do Recurso Hierárquico autuado com o n.º 33/2006, intentado do indeferimento da Reclamação Graciosa n.º 33792003/400043.9, e ordena «... a substituição por nova liquidação, que não considere, o valor de € 1.753.231,80, relativa a juros vencidos, e o valor de € 194.083,83, na parte do valor imputável a retenções na fonte sobre rendimentos pagos à B…………».

II. Na aplicação do direito aos factos, relativamente à primeira das questões apreciadas, entendeu o Tribunal a quo que se considera verificada a preterição de formalidade legal essencial, por violação da alínea b) do n.º 2 e n.º 3 do art. 60.º da LGT «o que conduz à anulação da decisão do recurso hierárquico»; quanto à terceira questão, considerou «… a Administração não fez o enquadramento legal não identifica correctamente as entidades bem como não demonstra quais foram as normas violadas e não cumpridas pelo impugnante. A inspecção acciona a regra geral, mas não explica, claramente os motivos factuais e de direito que levaram à liquidação (...)».

III. Assim, dando como prejudicado o conhecimento das restantes questões, no seguimento da procedência do vício de preterição de formalidade legal que conduziu à anulação da decisão do recurso hierárquico e anulação parcial do acto de liquidação. Não obstante,

IV. sobre a correcção objecto de apreciação e deferimento em sede de recurso hierárquico ter entendido aquela instância que «Tendo havido já pela administração reconhecimento que o imposto no valor de 194.083,83 € relativo à liquidação adicional na parte do valor imputável a retenções na fonte, sobre o rendimento pago a não residente B………….., e embora na presente decisão foi declarado nulo por preterição de formalidade legal, repristina-se a respectiva decisão com a correspondente fundamentação».

V. Com a ressalva do sempre devido respeito, não pode a Fazenda Pública conformar-se com o assim doutamente decidido com fundamento em erro de julgamento – de direito e de facto – relativamente às correcções constantes dos presentes autos.

VI. Com efeito, na base da liquidação controvertida estão correcções de natureza meramente aritmética, decorrentes da responsabilização do Impugnante posicionado como substituto tributário na entrega do imposto, referente a não retenção na fonte de rendimentos atribuídos a não residentes em território português, correspondente aos pagamentos (i) de rendimento de prestação de serviços ao não residente B………… Company International Ltd, nos termos de contrato de serviços de consultadoria, no montante de € 194.083,83, e (ii) de rendimentos de títulos de dívida emitidas pelas entidades SFE e SFI instaladas na Zona Franca da Madeira a investidores não residentes, colocados no mercado internacional de obrigações através do investidor C…………. que custodiava os títulos que originaram aquele pagamento, no montante de € 1.753.231,80.

VII. Ora, tendo o Impugnante apresentado em sede de reclamação graciosa, o certificado de residência da B…………., veio a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) a considerar ainda em recurso hierárquico a prova da condição de não residente, desta feita ficando afastada a sua responsabilidade pela entrega do imposto* [*Por força do disposto no n.º 6 do artigo 90.º-A do CIRC, na redacção da Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, e do n.º 4 do artigo 48.º da referida Lei], determinando a anulação da liquidação adicional na parte do valor imputável a retenções sobre o rendimento pago a essa entidade, no montante de € 194.083,83;

VIII. mas relativamente às demais correcções – os juros de obrigações emitidas pelas SFE e SFI –, concluiu a AT que não foi feita a prova da condição de não residente dos investidores, pressuposto da isenção prevista no n.º 6 alínea b) do artigo 41.º do EBF** [**na redacção à data dos factos], propugnando a manutenção da correcção inicial. Desde logo,

IX. não se concorda com o vício que o Tribunal a quo aponta no primeiro segmento decisório – preterição de formalidades essenciais do procedimento, pelo facto de não ter sido o Impugnante notificado para exercer audiência prévia quanto à decisão do recurso hierárquico, que confirma parcialmente o indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra a liquidação, senão vejamos,

X. Não restam dúvidas à AT que o direito de participação dos interessados na formação das decisões que lhes dizem respeito tem consagração constitucional no artigo 267.º, n.º 5 da CRP e encontra-se consubstanciado no ordenamento jurídico tributário nos artigos 60.º da LGT, 45.º do CPPT e artigos 8.º, 100.º e 103.º do CPA, ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPPT. Tal participação pode efectuar-se, designadamente, pelo direito de audição antes da liquidação, no caso do procedimento terminar com a prática de um acto tributário de liquidação, mas também pelo direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições, nos termos do artigo 60.º, n.º 1, alíneas a) e b), da LGT).

XI. A falta de audição prévia a que o Impugnante alude é a pretensamente verificada no procedimento de recurso hierárquico por ele interposto do indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra a liquidação impugnada e que, a seu ver, violaria o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 60.º da LGT.

XII. No caso sub judicio, foi o Impetrante efectivamente notificado para exercer o direito de audição acerca das correcções efectuadas ao IRC, constantes do Relatório da Inspecção Tributária (vide pontos 1 e 2 do probatório) pelo que, nos termos do n.º 3 do artigo 60.º da LGT, estava dispensada a sua audição antes da liquidação, tendo ainda presente a excepção contemplada na norma.

XIII. Cremos que o que o legislador pretendeu acautelar foi a audição dos contribuintes em qualquer das fases do procedimento que culmina com a liquidação, não tendo os mesmos que exercer esse direito em cada uma das diferentes fases procedimentais, isso se já se tiverem pronunciado sobre as questões que importem à decisão e sobre as provas produzidas i.e., pode ser dispensada a audiência dos interessados a não ser que se invoquem factos novos sobre os quais ainda se não tenham pronunciado, como se apreende do citado artigo 103.º, n.º 2, alínea a) do CPA, e neste sentido se pronuncia a jurisprudência do venerando STA proferido no Processo n.º 0497/11, de 29.06.2011, disponível em www.dgsi.pt.

XIV. E, na verdade, o Impugnante foi notificado para exercer o direito de audiência prévia relativamente à proposta de indeferimento total da reclamação graciosa para poder assim, pronunciar-se sobre as questões fácticas e jurídicas que motivaram a decisão de indeferimento da mesma por parte da AT, mas prescindiu do uso dessa faculdade (vide pontos 4 e 5 do probatório).

XV. Ulteriormente, aquando da decisão do recurso hierárquico que secundou o indeferimento da reclamação – confirmando em parte o sentido desta –, entendeu a AT ser de dispensar a audiência do interessado, com o fundamento de que não foram invocados factos sobre os quais aquele ainda se não tivesse pronunciado (vide pontos 7 a 9 do probatório), e não ouvir novamente o ora Recorrido antes da decisão que defere parcialmente o recurso hierárquico e,

XVI. Nessa medida, não se verifica a apontada preterição de formalidade legal.

Sem conceder,

XVII. Relativamente ao vício de falta de fundamentação que o Tribunal a quo imputa ao acto de liquidação controvertido, salvo o devido respeito, cremos que também aqui carece de razão, não sem antes recordar que,

XVIII. a fundamentação dos actos tributários deve ser expressa através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, que constituirão, neste caso, parte integrante do respectivo acto tributário, equivalendo à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto (cf. v.g. artigo 77.º LGT e artigos 124.º e 125.º do CPA): neste sentido o CPA anotado por Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco Amorim, Edição, Almedina, também o Acórdão do venerando STA de 28.01.1998, proferido no Processo n.º 021331, disponível no endereço electrónico já citado.

XIX. Ora, precisamente o que se passa no caso dos autos é que a liquidação adicional em crise assentou, designadamente, nos dados e elementos fornecidos pelo contribuinte e resultou da não retenção na fonte do IRC que se mostrava devido aquando do pagamento de juros originados pelos empréstimos obtidos dos investidores, aduzindo que terão sido esses rendimentos pagos exclusivamente a não residentes, não obstante a inexistência da prova da não residência, fazendo-se referência ao investidor C…………..

XX. O próprio Impugnante assumiu, à data do procedimento inspectivo desconhecer quem eram os subscritores dos títulos, assim como o facto dos mesmos serem seus clientes, alegando que só a C…………. – quem custodiava os títulos, dispunha da informação relativa aos beneficiários dos juros pagos, não sendo possível demonstrar a qualidade de não residente dos beneficiários dos rendimentos, aquando a retenção na fonte do imposto sobre os juros pagos pelas sucursais financeiras exterior e internacional da recorrida, a liquidação de imposto teria que ocorrer, de harmonia com o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 88.º e n.º 2 do artigo 4.º do CIRC.

XXI. No exercício do direito de audição do Projecto de Relatório de Inspecção, o Impetrante esclareceu que os juros pagos a não residentes estavam isentos de IRC nos termos da alínea b) do artigo 33.º do EBF, mas a correcção foi mantida por os Serviços de Inspecção considerarem que não tinha sido feita a prova da condição de não residente do investidor C………...

XXII. Em sede de reclamação graciosa, o Impetrante vem dizer – vide ponto 52 da petição de reclamação, que os títulos que originaram o pagamento de juros eram custodiados pela C…………., que à data do procedimento de inspecção, apenas essa dispunha de informação relativa aos beneficiários dos mesmos, que desconhecia se eram seus clientes e, que actuava tão somente como intermediário financeiro junto daquela entidade (a C…………).

XXIII. Sendo esse facto apurado após o procedimento de inspecção, encontrava-se à data do procedimentos de reclamação, em condições de comprovar a qualidade de não residente dos beneficiários – condição necessária para a aplicação do beneficio da isenção de imposto sobre o rendimento, vide ponto 55 da petição de reclamação.

XXIV. Apresentou para o efeito dois documentos: o Documento n.º 3 (vide fls. 38 a 203 do processo) – Listagens da totalidade dos rendimentos gerados por cada emissão obrigacionista discriminando o nome, a identificação fiscal, e o valor dos juros pagos de aproximadamente 7.500 titulares, e o Documento n.º 4 (vide fls. 204 a 241 do processo) – Documentação atestando a condição de não residente de apenas 15 titulares.

XXV. Só que não foram suficientes para atender a pretensão do Impugnante, pois o Documento n.º 4 que podia substituir a declaração prevista no n.º 14 do artigo 41.º do EBF, na redacção do Decreto-lei n.º 307/95, de 20.11 *** [*** na redacção à data dos factos], apenas permitia uma amostragem exígua – de 15 investidores –, num universo de aproximadamente 7.500 investidores, por isso sem representatividade pretendida pelo Impugnante, no sentido de considerar justificada a isenção do n.º 6 do artigo 41.º do EBF para a generalidade dos juros pagos e, desta feita não se verificarem os seus pressupostos relativamente à totalidade dos investidores.

XXVI. Ainda assim, se por mera hipótese se considerasse justificada a não retenção imputável aos juros pagos aos 15 investidores da amostra exibida, a mesma seria inexequível, não se podendo considerar qualquer valor a favor do contribuinte por não terem sido indicados os montantes em causa.

XXVII. As alegações produzidas pelo Impugnante – ante a fundamentação das correcções levadas a efeito –, de que não podia a AT deixar de aplicar a isenção a sociedades estrangeiras por ficar automaticamente demonstrado que eram sociedades estrangeiras não residentes, foi realçado que a mera indicação das suas denominações sociais não é suficiente para demonstrar que são sujeitos passivo de imposto no país de residência;

XXVIII. Mas como da análise do citado Documento n.º 3, foram encontrados dois pagamentos de juros ao investidor ......, S.A., nipc ………., a fls. 40 o montante de € 1.246,25, e a fls. 203 o montante de € 7.800,00, no total de € 9.046,25 ao qual corresponde retenção de € 1.809,25 de imposto, a AT por aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-lei n.º 215/89 de 01.07*** [*** na redacção à data dos factos], considerou justificada a dispensa de retenção de € 1.809,25, e decidiu-se anular o acto de liquidação nessa parte.

XXIX. Isto explicado, não pode a Fazenda Pública deixar de sublinhar em recurso que causa estranheza a argumentação que depois o Impugnante, ora recorrido vem a utilizar, apontando já em sede de recurso hierárquico, incongruências quer na fundamentação das correcções, quer na fundamentação do indeferimento da reclamação, não obstante se constatar, que não lhe são desconhecidas as motivações de uma ou de outra. E o mesmo se diga do teor da petição inicial de impugnação, que quanto a nós consubstancia o exercício de uma posição jurídica contraditória com o comportamento assumido anteriormente perante a AT, em sede de procedimento inspectivo e de reclamação graciosa.

XXX. E, não obstante o sustentado pelo Tribunal a quo, o que resulta dos autos é que o acto em crise se encontra devidamente fundamentado, não se verifica qualquer obscuridade, contradição ou insuficiência dos critérios utilizados, por nele se expressarem as razões, do conhecimento do contribuinte a partir das suas próprias declarações nos termos atrás expressos, dali se percebendo por que se tributou aquele rendimento, sendo claros os motivos e os factos concretos ou de direito em que se fundou a AT para decidir no sentido em que o fez, e ali se especificam os elementos determinantes dos critérios utilizados na quantificação do resultado fiscal relativo à liquidação adicional impugnada.

XXXI. A liquidação adicional em apreço mostra-se fundamentada de forma bastante e suficiente, não obstante o Impugnante parecer defender a independência da liquidação dos actos que a precedem, mas isso não é correcto pois a determinação da matéria colectável e a liquidação deve ser vista conjuntamente, porque esta é incidível daqueles.

XXXII. É por demais evidente que da exposição dos motivos aduzidos pela AT ficou o ora Recorrido a saber o porquê de tal decisão já que se esclareceram as razões de facto e de direito que determinaram aquela. E, no mais que sobre a matéria haveria a dizer a Fazenda Pública acompanha o que nos transmite de forma tão sábia o Acórdão do TCAS proferido no Processo n.º 04410/10, de 25.01.2011, disponível em www.dgsi.pt.

XXXIII. Ante o que se deixou exposto, afigura-se-nos que a liquidação de IRC respeita os requisitos da fundamentação legalmente exigidos permitindo perceber a sua natureza, as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável, ou seja, a reconstituição do itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pela entidade decidente e ao contribuinte defender-se nos termos em que o fez.

XXXIV. Assim, por tudo quanto se deixou dito, cremos que não se verificam os apontados vícios, sendo a actuação da AT conforme à lei e ao entendimento que dali decorre, justifica-se a manutenção dos actos controvertidos.

XXXV. A douta Sentença recorrida violou os princípios e as disposições legais supracitadas.

Termos em que, e nos melhores de direito aplicáveis, deve ser dado provimento ao presente recurso jurisdicional e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrido, com o que se fará inteira JUSTIÇA».

1.3 O Recorrido contra-alegou, com conclusões do seguinte teor:

«i. A decisão de indeferimento parcial do Recurso Hierárquico padece do vício de violação de formalidade essencial, porquanto não foi concedida ao Recorrido a possibilidade de exercer o seu direito de audição prévia, nos termos do artigo 60.º da Lei Geral Tributária e do artigo 267.º, número 5 da Constituição da República Portuguesa, em manifesta violação do princípio da participação;

ii. A liquidação adicional de imposto padece do vício de falta de fundamentação, nos termos dos artigos 36.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, 77.º da Lei Geral Tributária e 125.º do Código do Processo Administrativo, não sendo admissível a fundamentação a posteriori pela Administração Tributária, uma vez que a mesma deve ser contemporânea ao acto tributário;

iii. O indeferimento parcial do Recurso Hierárquico com base nos argumentos do indeferimento da Reclamação Graciosa consubstancia uma violação do direito à fundamentação dos actos administrativos, ao não resultar perceptível para o Recorrido (e para qualquer contribuinte diligente), a motivação concreta dos actos em causa, bem como uma incorrecta aplicação da lei à data relevante, mormente o artigo 41.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (actual artigo 33.º), na medida em que era legítimo ao Recorrido concluir, dos elementos disponíveis, que não era devida qualquer retenção na fonte, e tanto bastava para a aplicação da dispensa respectiva;

iv. Da documentação relativa às operações em causa resultava que os juros das obrigações referidas beneficiavam, na esfera dos beneficiários que estivessem instalados nas zonas francas e que não fossem instituições de crédito, sociedades financeiras ou sucursais financeiras que realizavam operações próprias da sua actividade com residentes ou estabelecimentos estáveis de não residentes ou que fossem não residentes em território português, exceptuados os estabelecimentos estáveis nele situados e fora das zonas francas, de isenção de IRS ou de IRC ao abrigo do número 6 do então artigo 41.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (actual artigo 33.º, entretanto revogado);

v. A dispensa de retenção na fonte no caso de entidades não abrangidas pela isenção referida, nomeadamente porque eram residentes em Portugal para efeitos fiscais, decorria do [artigo] 9.º ou do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 215/89, de 1 de Julho, consoante se tratasse de entidades isentas ou instituições financeiras sujeitas a IRC, razão pela qual o Recorrido não efectuou qualquer retenção na fonte de IRS ou IRC sobre os rendimentos em causa;

vi. O Recorrido cumpriu a lei aplicável à data, lei esta que não previa nem a prova da qualidade de não residente em Portugal, nem a prova da qualidade de residente noutro Estado preconizada pela Direcção de Serviços de Inspecção Tributária. Acresce que, uma vez que a qualidade de não residente resultava dos documentos que suportavam as operações em causa, não competia ao Recorrido qualquer outro tipo de diligência para legitimar a não retenção na fonte;

vii. O indeferimento parcial do Recurso Hierárquico consubstancia uma violação dos princípios constitucionais da boa fé e da imparcialidade nas relações entre os particulares e a Administração Pública, ao ter sido cometida à Direcção de Serviços de Inspecção Tributária, na prática e para todos os efeitos substancialmente relevantes, que na redacção à data relevante a não tinha, a competência para decidir a Reclamação apresentada contra a liquidação adicional, quando esta entidade havia investigado e em relação à qual formulara já os juízos pré-concebidos flagrantemente evidentes no teor da Informação produzida;

viii. Verifica-se, portanto, que a sentença recorrida analisou correctamente os factos que lhe foram submetidos, julgando correctamente a causa e aplicando as normas de Direito de forma adequada, não merecendo qualquer censura, pelo que deverá ser mantida na íntegra.

Nestes termos, e nos mais de Direito que Vossas Excelências suprirão, deverá o presente Recurso ser dado como improcedente, por não provado e, em consequência, manter-se válida na ordem jurídica a sentença proferida pelo Tribunal a quo, tudo com as legais consequências».

1.4 O Tribunal Central Administrativo Sul julgou-se incompetente em razão da hierarquia, indicando como tribunal competente o Supremo Tribunal Administrativo, ao qual o processo foi remetido mediante requerimento da Oponente.

1.5 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja concedido provimento ao recurso, revogada a sentença recorrida e julgada improcedente a impugnação judicial, conhecendo-se dos fundamentos que a sentença considerou prejudicados, após se dar às partes a faculdade de se pronunciarem sobre os mesmos ao abrigo do disposto no n.º 3 do art. 715 do Código de Processo Civil (CPC), nos seguintes termos:

«[…] Antes de mais diga-se que, como resulta do probatório e dos autos, a recorrente, em sede de recurso hierárquico obteve provimento da sua pretensão nos seguintes pontos:
1. Foi anulada a LA na parte do valor imputável a retenções na fonte, sobre o rendimento pago ao não residente B…………, no montante de € 194.083,83;
2. Relativamente aos juros de obrigações emitidas pelo SFE e SFI instaladas na ZFM anulou-se o montante de € 1.809,25., mantendo-se a correcção de € 1.751.231,80.
Assim, a presente impugnação judicial reporta-se, tão-somente, à correcção a que se refere o anterior ponto 2, no montante de € 1.751.422,55, como deflui dos artigos 6.º e 7.º da PI.
De facto, no que concerne às correcções de € 194.083,83 e € 1.809,25, revogadas pela AT, formou-se caso decidido ou resolvido.
Não obstante, a sentença recorrida, indevidamente, conheceu da correcção dos referidos € 194.083,83 anulando essa parcela pelas razões que haviam sido invocadas pele AT (fls. 179 verso).
Tal como conheceu, também, da referida correcção no montante de € 1.809,25, determinando a sua anulação (fls. 179 verso /180).
Conheceu, assim, a sentença recorrida de questões que não lhe foram submetidas para apreciação, pelo que se verifica excesso de pronúncia, nos termos do estatuído nos artigos 125.º do CPPT e 668.º/1/ d) do CPC.
Uma vez que se trata de nulidade que não é de conhecimento oficioso, impõe-se, contudo, analisar se houve erro de julgamento de direito quanto a tal matéria.
A recorrente não sindicou nem podia sindicar as correcções revogadas em sede de recurso hierárquico, pelo que nessa parte se formou caso decidido ou resolvido.
Não podia, pois, a sentença recorrida emitir pronúncia sobre essas correcções, já estabilizadas na ordem jurídica, e sobre as quais a recorrente não solicitou ao tribunal recorrido a emissão de pronúncia. Nessa parte não pode, pois, a decisão recorrida deixar de ser revogada.
Vejamos, agora, a alegada preterição do exercício do direito de audição prévia em sede de procedimento de recurso hierárquico.
O direito consagrado nos artigos 100.º do CPA, 45.º n.º 1 do CPPT e 60.º da LGT constitui uma concretização do princípio da participação dos particulares na formação das decisões administrativas que lhe digam respeito, dando, assim, satisfação à directriz consagrada no artigo 267.º/5 da CRP, revestindo a natureza de um princípio estruturante da lei especial sobre o processamento da actividade administrativa, traduzindo a intenção legislativa de atribuição de um verdadeiro direito subjectivo procedimental.
Resulta do probatório e dos autos os que à recorrente foi dada a possibilidade de exercer o direito de audição em sede de acção inspectiva e em sede de procedimento de reclamação graciosa.
Como refere António Lima Guerreiro1 [1 Lei Geral Tributária, anotada, páginas 278/279] “O direito de audição é exercido geralmente por uma única vez no procedimento: finda a instrução e antes da decisão. Não pode ser utilizado para introduzir dilações sucessivas no procedimento. O presente artigo (60.º) recusa, pois, a ideia de qualquer dupla ou tripla audição no procedimento”.
E continua o mesmo autor, “O direito de audição não se aplica necessariamente aos chamados procedimentos de segundo grau, incluindo reclamações ou recursos hierárquicos. De acordo com o princípio da unidade do procedimento, apenas quando, nos procedimentos de segundo grau se abrir nova fase instrutória, tem lugar o direito de audição. Não há, nos procedimentos de segundo grau, direito de audição, quando a decisão se deva basear nos mesmos factos em que fundamentou a decisão anterior”.
Não podemos estar mais de acordo com o autor referido.
A recorrente teve a possibilidade de exercer o direito de audição antes da liquidação e em sede de reclamação graciosa.
No âmbito do recurso hierárquico não houve qualquer alteração factual nem se abriu nova fase instrutória.
Assim sendo, a nosso ver, não tinha a recorrente que ser ouvida sobre o projecto de decisão de tal recurso, uma vez que já tinha podido exercer tal direito no âmbito do procedimento e tendo em conta a princípio da unidade do mesmo.
Neste sentido vai, também, a jurisprudência do STA2 [2 Entre outros, acórdão de 16 de Janeiro de 2013 – P. 0670/12, disponível no sítio da Internet www.dgsi.pt].
Portanto, não ocorre vício de forma, por preterição de audição prévia., determinante da anulação da decisão proferida em sede de recurso hierárquico.
Mas, mesmo que assim não se entendesse, o certo é que tal vício nunca poderia determinar a invalidade do acto tributário de liquidação, anterior a tal vício e em relação ao qual foi cumprida tal formalidade.
Vejamos, por último, o alegado vício formal de falta de fundamentação quer do acto de liquidação, quer da decisão de indeferimento da reclamação graciosa.
Nos termos do estatuído no artigo 77.º/1 da LGT a fundamentação deve consistir, no mínimo, numa sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito que motivaram a decisão, ou numa de declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas.
Por força do n.º 2 do mesmo artigo a fundamentação dos actos tributários pode ser efectuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.
De acordo com o art. 125.º/1 do CPA, a fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, que constituirão neste caso, parte integrante do respectivo acto, equivalendo à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto.
Ou seja, a fundamentação é suficiente quando proporcione aos destinatários do acto a reconstituição do itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pela autoridade que praticou o acto, de forma a poder saber-se claramente as razões por que decidiu da forma que decidiu e não de forma diferente3 [3 Acórdão do STA, de 2009.04.15, proferido no recurso n.º 065/09, disponível no sítio da Internet www.dgsi.pt].
Ora, no caso em análise, como resulta do probatório e dos autos, a liquidação sindicada está suficientemente fundamentada no RIT e a decisão de indeferimento da reclamação graciosa na Informação estruturada pela DSPIT para a qual remete o despacho de indeferimento,
A recorrente através dos referidos documentos ficou a conhecer o iter valorativo e cognoscitivo que levou a AT a decidir no sentido em que decidiu e não noutro, facto que lhe permitiu, cabalmente defender a sua posição, nomeadamente, em sede de reclamação graciosa, recurso hierárquico e impugnação judicial, como ressalta da simples leitura dos articulados.
Portanto, em termos formais, os actos em causa estão suficientemente fundamentados.
Questão diferente será a fundamentação substancial, mas isso já contende não com o invocado vício de forma, mas sim com a validade substancial dos actos, o que contende com eventual vício substancial de violação de lei.
Não ocorre, pois, a nosso ver, vício de forma por falta ou insuficiência de fundamentação formal.
A sentença recorrida merece, pois, censura, pelo que deverá ser revogada.
Uma vez que foi fixada a pertinente factualidade, nos termos do estatuído nos artigos 726.º e 715.º/2 do CPC, deve o STA conhecer das questões que ficaram prejudicadas pela solução dada à causa, em substituição do tribunal recorrido e que são:
1. Ilegalidade do despacho de indeferimento da reclamação graciosa, por violação dos princípios da boa-fé e imparcialidade;
2. Ilegalidade da decisão de indeferimento de RH por aplicação da lei vigente.
Para o efeito, antes de mais, impõe-se que as partes sejam ouvidas sobre tais questões, pelo prazo de 10 dias, o que se promove (artigo 715.º/3 CPC)».

1.6 Foram ouvidas as partes nos termos promovidos pelo Procurador-Geral Adjunto.

1.6.1 O Recorrido, em resposta a essa notificação, veio dizer o seguinte:

«[…] 5. Ora, sem prejuízo de o Recorrido entender que a sentença recorrida não merece qualquer censura, por se afigurar ser a melhor solução jurídica para o caso submetido ao escrutínio judicial, vem o mesmo, nos termos do citado artigo 715.º, número 3 do Código de Processo Civil, pronunciar-se sobre as questões que ficaram prejudicadas pela solução dada à causa pela sentença recorrida.

6. Entretanto, aquando da apresentação das suas Contra-Alegações do Recurso o Recorrido pronunciou-se, desde logo, quanto a todas as questões invocadas na petição inicial apresentada junto do Tribunal a quo, pelo que abordou, igualmente, as questões que ficaram prejudicadas pela solução dada à causa pela sentença recorrida – vide pontos 73. e seguintes e, ainda, as conclusões iii) e seguintes das Contra-Alegações apresentadas pelo Recorrido.

7. Nessa medida, o Recorrido, ao abrigo do princípio da economia processual, remete, integralmente, a sua alegação, no que concerne às sobreditas questões, para a argumentação aduzida nos pontos 73. e seguintes e, ainda, para as conclusões iii) e seguintes das Contra-Alegações por si apresentadas, as quais se dão por integralmente reproduzidas, nos termos e para os efeitos do artigo 715.º, números 2 e 3 do Código de Processo Civil, ex vi artigo 2.º, alínea e) do Código de Procedimento e de Processo Tributário, tudo com as legais consequências».

1.6.2 Também em resposta a essa notificação, a Recorrente apresentou alegações, resumidas em conclusões do seguinte teor:

«1.ª Quanto à primeira questão – ilegalidade do despacho de indeferimento da reclamação graciosa, por violação dos princípios da boa-fé e imparcialidade, foi respeitado o princípio da boa-fé e da imparcialidade no procedimento, uma vez que, cfr. resulta dos elementos constantes dos autos, o funcionário que emitiu parecer sobre a reclamação não teve qualquer intervenção na fiscalização/exame à escrita que determinou as correcções reclamadas.

2.ª No que toca à 2.ª questão: a ilegalidade da decisão de indeferimento do RH por incorrecta aplicação da lei vigente – correcção efectuada pela AT no valor de € 1.751.422,55, também não se verifica a apontada ilegalidade.

3.ª Na verdade, quanto às entidades que sejam não residentes, a redacção à data do art. 41.º do EBF dispunha que quando tal qualidade (de não residente) não resultasse inequivocamente dos documentos que suportam a operação, devia tal qualidade ser comprovada através de declaração do próprio que contivesse todos os documentos de identificação.

4.ª Ora, no caso dos autos, o recorrido apresentou em sede de reclamação graciosa o doc. 3 constituído por listagens de juros pagos por cada emissão de títulos nos quais, de modo geral, foi indicado o nome, n.º de contribuinte, a quantidade de títulos, o valor unitário e o valor líquido pago, constatando-se do confronto dos mesmos que a generalidade dos investidores foram pessoas singulares, possivelmente de nacionalidade portuguesa atentos os seus nomes.

5.ª Contudo, somando as várias parcelas de tais listagens, verifica-se que o total de juros aí descritos é de € 8.641.522,11 inferior ao montante de juros pagos que foi indicado e apurado pela fiscalização.

6.ª O recorrido apresentou, ainda, o Doc. 4 contendo documentação que, supostamente, visava comprovar a não residência em território português de apenas 15 beneficiários dos juros, mais invocando que estava à disposição da AT para apresentar os documentos que lhe fossem solicitados.

7.ª Ora, também aqui se verificou que a maioria dos beneficiários ou a quase totalidade são pessoas singulares com nomes portugueses tendo o ora recorrido explicitado que estes eram emigrantes, clientes do banco, cuja prova de residência fora do território português tinha sido feita de acordo com o recurso à legislação que regula as contas poupança emigrantes.

8.ª E não resulta de listagens como as que foram apresentadas sob o doc. n.º 3 a qualidade de não residente das pessoas singulares beneficiárias dos juros, sendo certo que também dos autos nada indicava a residência fiscal desses beneficiários.

9.ª Quanto ao doc. 4 só são apresentadas cópias de documentos fiscais, de certificados de residência e bilhetes de identificação emitidos por países estrangeiros relativamente a 15 investidores.

10.ª Para um universo de 7500 investidores tal número é insignificante para provar a qualidade de não residente dos beneficiários dos rendimentos.

11.ª E, ainda que se pudesse provar a qualidade de não residente desses 15 investidores da amostra não se pode considerar como provada a isenção do n.º 6 do art. 41.º do EBF para a generalidade dos juros pagos, por não se verificar o pressuposto da qualidade de não residente dos investidores ainda para mais quando essa amostragem de 15 investidores também não indica os montantes de pagamento de juros que estava em causa.

Termos pelos quais e, com o douto suprimento de V. Exas, conclui-se, tal como nas alegações, a fls..., que deve ser concedido provimento ao presente recurso jurisdicional, devendo a sentença recorrida ser substituída por outra que julgue a impugnação judicial improcedente».

1.7 Colheram-se os vistos dos Conselheiros adjuntos.

1.8 Cumpre apreciar e decidir.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

A Juíza do Tribunal a quo efectuou o julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

«Pelos documentos juntos aos autos, com relevância para o caso e não impugnados, considero provados os seguintes factos:

1. Com data de 02.05.2003, foi elaborado pela Direcção de Serviços de Prevenção e Inspecção Tributária (DSPIT) com sede em Lisboa, o Relatório de Inspecção Tributária, o qual mereceu concordância do Director de Serviços em 27.09.2003, conforme consta de fls. 42 a 91 dos Processo administrativos (PA) apenso aos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido;

2. Com relevância para a questão consta do referido relatório que:
(…)
1.3 – IRC – Retenções na fonte
1.3.1 – Variações Patrimoniais Negativas
Da análise à Variações Patrimoniais Negativas (Campo 203, da declaração Mod. 22), verificámos a existência de aquisições de serviços de consultoria efectuados no âmbito da operação de reestruturação realizada em 2000. Tratam-se de aquisições de serviços a prestador, que não possui no território nacional sede, estabelecimento estável ou domicilio a partir do qual o serviço tenha sido prestado (aceites como variação patrimonial negativa nos termos do art. 24.º do CIRC), relativamente às quais não houve retenção de IRC, que totalizam 259.402.090$00 (Contrato da B………… & Co Limited – Londres, celebrado a 30.1.2000, Cfr. Anexo n.º 75).
Os termos da al. g) do n.º 7 (aditada pelo Decreto-Lei n.º 25/98, de 19/2), do n.º 2 e n.º 4, do art. 75.º do CIRC, os rendimentos derivados deste tipo de prestações de serviços realizadas em território português, cujo pagamento seja imputável a um estabelecimento estável aí situado, são tributados à taxa de 15%, prevista na al. b), do n.º 4, do art. 74.º, do CIRC, no montante de 194.083,83 € (38.970.314$00 = 259.402.090$00 * 0,15).
(…)
1.3.3 Pagamento de rendimentos no momento de vencimento dos respectivos cupões, referentes a títulos de Dívida emitida pelo próprio Banco
O sujeito passivo apresenta no seu balanço, na área de passivo, vários empréstimos obrigacionistas.
De acordo com os procedimentos a adoptar nesta área, procedemos à verificação da correcta liquidação, no âmbito das retenções na fonte de imposto sobre o rendimento, nos vários momentos de pagamento da remuneração dos títulos emitidos.
Ao analisarmos os documentos de suporte, verificámos que o contribuinte não procedeu à retenção na fonte do imposto, aquando do pagamento de juros dos empréstimos e momentos de pagamento, identificados no Anexo n.º 77, para alguns investidores, indicando que se tratava de pagamentos de juros pagos exclusivamente a não residentes.
No entanto, não fez qualquer prova da “qualidade de não residente” relativamente a estes investidores (C………….), pelo que não se poderá aplicar o regime fiscal previsto nas Convenções para Evitar a Dupla Tributação, sendo de aplicar as taxas internas prevista na al. c) do n.º 1 do art. 88.º do CIRC. Nos termos do n.º 4 do art. 91.º do CIRC (actual n.º 5 do art. 106.º), conjugado com os arts. 20.º e 28.º da Lei Geral Tributária, o A…………. é o responsável originário pela entrega do imposto que deveria ter retido, pelo que foi apurado imposto em falta, no montante 1.753.231,80 € (351.491.478$00) (cfr. Anexo n.º 77), de harmonia com o disposto na al. c) do n.º 1 do art. 75.º (actual art. 88.º) e no n.º 2 do art. 4.º, ambos do CIRC.
(…)
X - DIREITO DE AUDIÇÃO
(...)
Analisado o documento mencionado e considerando os argumentos/documentos apresentados o Sujeito Passivo, foram alterados os seguintes pontos do Projecto de Conclusões:
(…)
1.3.3 – Pagamento de rendimentos no momento de vencimento dos respectivos cupões, referentes a títulos de Dívida emitida pelo próprio Banco
Relativamente a esta correcção, o contribuinte vem alegar que se tratam de rendimentos pagos a entidades não residentes e como tal isentos nos termos da al. b) do n.º 6 do art. 33.º do EBF (Cfr. Anexo n.º 90, fls. 19 a 21).
Para efeitos fiscais, é necessária a prova da “qualidade de não residente”, para se efectivar a isenção em causa, a qual não foi apresentada (relativamente a estes investidores (C…………)).
Atendendo ao acima referido mantém-se a correcção inicial de 1.756.237.80 € (351.497.418$00 Cfr. Anexo n.º 77). (fls. 41 a 97 do PA)

3. A impugnante, em 04.11.2003, deduziu reclamação graciosa da liquidação adicional do IRC, respeitante aos exercícios de 2000 (fls. 2 a 16 do processo de Reclamação Graciosa – RG – apenso dos autos);

4. Por despacho de 18.10.2005 o Director dos Serviços de Prevenção e Inspecção Tributária (DSIT) foi proferido despacho de concordância sobre o projecto de indeferimento da reclamação graciosa, consubstanciada na informação n.º 115-AJT/05 e ordenada a audição prévia (fls. 19 a 28 do RG);

5. A impugnante não exerceu o direito de audição prévia (fls. 19 a 28 do RG);

6. Em 09.12.2005, pelo despacho da Directora Tributária Assessor [sic], por subdelegação de poderes, indeferiu a reclamação graciosa, com os fundamentos constantes do projecto de decisão (fls. 32 e 33 dos autos);

7. Em 03.02.2006, a impugnante interpôs recurso hierárquico da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, dirigida ao Senhor Ministro de Estado e das Finanças, (fls. 39 a 80 do Processo de Recurso Hierárquico – RH – apenso aos autos);

8. Em 23.01.2008, foi elaborada a informação n.º 1568/2007, pela Direcção de Serviços de Imposto sobre os Rendimentos de Pessoas Colectivas, na qual foi aposto o despacho de “Defiro parcialmente nos termos propostos. 2008.03.04. Substituto Legal do Director Geral” (fls. 188 a 212 do Processo de Recurso Hierárquico apenso aos autos);

9. A impugnante não foi notificada, no âmbito do recurso hierárquico, para exercer o direito de audiência prévia;

10. A presente impugnação foi apresentada em 10.07.2009.

O Tribunal formou a sua convicção relativamente a cada um dos factos dados como assentes, tendo por base os documentos dos autos, do processo administrativo, processo de reclamação graciosa e recurso hierárquico junto aos autos.

Não resultam provados ou não provados quaisquer outros factos com interesse para a decisão».


*

2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

Na sequência de uma acção de fiscalização ao Contribuinte, a AT entendeu que este, indevidamente, não fez retenções na fonte do IRC relativamente aos seguintes rendimentos: i) honorários pagos por serviços de consultadoria prestados pela “B……….. & Company International, Ltd.” e ii) pagamento de juros vencidos no ano de 2000 pelos empréstimos obrigacionistas emitidos pelas sucursais financeiras exteriores (SFE) ou internacionais (SFI) do ora recorrido na Zona Franca da Madeira (ZFM) auferidos por entidades não residentes ou, alguns casos, por entidades residentes em Portugal, pagos através de uma entidade custodiante dos títulos em causa, responsável pela colocação dos referidos títulos no mercado internacional (“C…………”). De acordo com o relatório da fiscalização os montantes de retenção em falta ascendem a € 194.083,83 e a € 1.753.231,80, respectivamente.
A AT procedeu às correspondentes correcções à matéria tributável declarada e à consequente liquidação adicional do IRC.
O Contribuinte reclamou graciosamente dessa liquidação e, na sequência do indeferimento da reclamação graciosa, deduziu recurso hierárquico. Neste, a AT, reconhecendo ao aí recorrente parcial razão, procedeu à anulação total da correcção decorrente da não retenção de imposto relativamente aos honorários por serviços de consultadoria (no montante de € 194.083,83) e à anulação parcial da correcção decorrente da não retenção de imposto relativamente aos supra referidos juros de empréstimos obrigacionistas (apenas no montante de € 1.809,25, pelo que, do montante inicial de € 1.753.231,80, a correcção ficou reduzida a € 1.749.613,30).
Inconformado com a decisão do recurso hierárquico na parte que lhe foi desfavorável, o contribuinte deduziu a presente impugnação judicial.
Sustentou, em síntese, que foi preterido o direito de audiência prévia à decisão do recurso hierárquico (arts. 8.º a 23.º da petição inicial), que a AT, ao permitir que a reclamação graciosa fosse apreciada e decidida pelo mesmo órgão que instruiu o procedimento de liquidação, incorreu em violação dos princípios constitucionais da boa-fé e da imparcialidade nas relações entre os particulares e a Administração (arts. 24.º a 45.º da petição inicial), que quer a decisão da reclamação graciosa quer, antes dela, a própria liquidação adicional, não dão a conhecer as respectivas motivações, o que consubstancia violação do direito à fundamentação (arts. 46.º a 64.º da petição inicial) e, finalmente, que a liquidação enferma de violação de lei por erro nos pressupostos de direito, uma vez que era legítimo o Contribuinte concluir, com base nos elementos disponíveis, que não era devida retenção na fonte com referência aos juros dos empréstimos obrigacionistas (arts. 65.º a 105.º da petição inicial).
A sentença julgou a impugnação judicial procedente e anulou a liquidação.
Antes de avançarmos na apreciação dos fundamentos por que a sentença deu razão ao Impugnante, convém deixar duas notas: uma quanto ao objecto da impugnação judicial, a outra quanto aos termos da decisão.
Quanto ao objecto da impugnação judicial, a sentença considerou que estava ainda em discussão a correcção relativa à não retenção do IRC pelo pagamento efectuado à “B………….”, bem como a totalidade da correcção relativa aos juros dos empréstimos obrigacionistas, olvidando que essas correcções, a primeira totalmente e a segunda em (uma pequena) parte, foram revogadas em sede de recurso hierárquico. Aliás, o Impugnante disso bem deu conta na petição inicial, motivo por que apenas veio sindicar a decisão do recurso hierárquico (objecto imediato) e a liquidação adicional (objecto mediato) na parte respeitante às correcções não revogadas. Assim, mal se compreende que a sentença tenha considerado como objecto da impugnação judicial o acto com uma dimensão que já não existia na ordem jurídica (e que nem sequer na petição inicial foi configurado com essa dimensão). Isto mesmo após a sentença ter anulado a decisão proferida no recurso hierárquico, pois essa anulação nunca poderia incluir a parte da decisão que não vinha impugnada e que, por isso, se erigiu em caso decidido ou caso resolvido. Nessa medida, a sentença pronunciou-se sobre objecto inexistente, motivo por que, na parte correspondente, deve ter-se por inócua.
Quanto aos termos da decisão, e sem prejuízo do que ficou dito, deveria a sentença ter levado em conta que estamos no âmbito de contencioso de mera anulação, pelo que, na procedência da impugnação judicial, deveria ter-se limitado a anular (total ou parcialmente) o acto impugnado, não lhe sendo possível condenar a AT à prática de novo acto e, muito menos, pretender conformar este, sob pena de invasão dos poderes exclusivos da Administração (Na sequência de decisão judicial de anulação de acto tributário de liquidação, a AT deve observar o disposto no art. 100.º da Lei Geral Tributária (LGT). ).
Regressando à sentença e tendo presente o que vimos de dizer, ou seja, que apenas está em causa a legalidade da liquidação adicional de IRC na parte que teve origem na correcção respeitante aos juros dos empréstimos obrigacionistas e, essa, apenas no segmento em que não foi atendida a posição do ora Recorrido no recurso hierárquico, verifiquemos então se foi efectuado correcto julgamento.
A sentença anuiu à tese da Impugnante, no entendimento de que se verificou preterição do direito de audiência prévia em sede de recurso hierárquico e, prosseguindo na apreciação da legalidade da liquidação (Tenha-se presente que a impugnação judicial do indeferimento de recurso hierárquico tem por objecto imediato a decisão desse recurso e por objecto mediato os vícios imputados ao acto de liquidação, motivo por que, se for anulado o indeferimento do recurso hierárquico por vício procedimental da respectiva decisão, cabe ao tribunal conhecer dos vícios imputados ao acto tributário de liquidação, pois a competência judicial em sede de impugnação judicial abarca quer o indeferimento do recurso hierárquico, quer os vícios imputados ao acto tributário. Neste sentido, por mais recente e com indicação de jurisprudência, o acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 18 de Junho de 2014, proferido no processo n.º 1942/13, disponível em
http://www.gde.mj.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/a2c40ae6f15201f980257d010057184a.), considerou que este acto tributário enferma de falta de fundamentação, a qual não pode considerar-se sanada pelos fundamentos aduzidos pela AT em sede de reclamação graciosa, uma vez que não é admissível a fundamentação a posteriori.
Em consequência desse julgamento, anulou a liquidação impugnada e entendeu ficar prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas na petição inicial, designadamente a da falta de fundamentação imputada à decisão da reclamação graciosa, a da «violação dos princípios constitucionais da boa-fé e da imparcialidade nas relações entre os particulares e a Administração Pública consubstanciada na apreciação da reclamação e na decisão, em substância, da mesma reclamação, pelo órgão que instruiu o procedimento de liquidação» – este vício imputado exclusivamente à decisão do recurso hierárquico – e a da «incorrectamente aplicada legislação relevante».
A Fazenda Pública insurge-se contra a sentença, quer no segmento em que nesta se considerou verificada a preterição de formalidade essencial por ter sido negado ao Contribuinte o exercício do direito de audiência prévia à decisão do recurso hierárquico, quer na parte em que julgou que a liquidação enferma de falta de fundamentação.
Por outro lado, o Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, tendo emitido parecer no sentido de que o recurso merece provimento, por não se verificar o vício da falta de fundamentação da liquidação, sustenta que deve agora conhecer-se das questões que o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto julgou prejudicadas.
Assim, as questões a apreciar e decidir são as de saber:
a) se a sentença incorreu em erro de julgamento ao considerar que a decisão do recurso hierárquico enferma de preterição de formalidade essencial por a AT não ter facultado ao aí recorrente (o ora Recorrido) o exercício do direito de audiência previamente àquela decisão;
b) se a sentença fez correcto julgamento ao considerar que a liquidação impugnada enferma de insuficiência (legalmente equiparada à falta) de fundamentação.
Se àquela 1.ª questão for dada resposta positiva, haverá que conhecer das questões que a sentença considerou prejudicada e que respeitam aos invocados vícios de i) violação dos princípios constitucionais da boa-fé e da imparcialidade nas relações entre os particulares e a Administração decorrente do facto alegado de que a reclamação graciosa foi apreciada e decidida pelo mesmo órgão que instruiu o procedimento de liquidação e de ii) falta de fundamentação da decisão da reclamação graciosa.
Independentemente da resposta que for dada a essa questão ou questões, sempre haverá de apreciar-se a 2.ª questão enunciada [supra referida sob a alínea b)] e, caso esta venha a ser respondida negativamente, haverá ainda que indagar se pode conhecer-se em substituição das questões relativas à legalidade da liquidação que a sentença considerou prejudicadas e, na afirmativa, conhecê-las.

2.2.2 DO DIREITO DE AUDIÊNCIA PRÉVIA À DECISÃO DO RECURSO HIERÁRQUICO

Na sentença recorrida, a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, anuindo à argumentação do Impugnante, considerou verificada a preterição de formalidade essencial por ter sido negado ao Contribuinte o exercício do direito de audiência prévia à decisão do recurso hierárquico.
Para tanto, e em síntese, após enunciação das normas legais pertinentes – designadamente o art. 267.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e o art. 60.º da Lei Geral Tributária (LGT) –, e dando como assente i) que «[r]esulta da matéria assente que a impugnante, no âmbito do processo de reclamação graciosa, foi notificada para exercer o direito de audição prévia e não exerceu esse direito», ii) que a AT, na decisão subjacente à decisão do recurso hierárquico considerou que «em sede de recurso [hierárquico] não foram invocados factos novos sobre os quais o contribuinte não se tenha pronunciado» e que, por isso e invocando o disposto no n.º 3 do art. 60.º da LGT, dispensou a audição e, finalmente, iii) que «[r]esulta da matéria assente que a impugnante não foi notificada, no âmbito do recurso hierárquico, para exercer o direito de audição prévia», a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto deixou dito o seguinte:
«Da interpretação conjugada da alínea b) do n.º 2 e do n.º 3 do art. 60.º da LGT, decorre que, quando haja lugar à audição prévia nomeadamente de indeferimento parcial dos recursos, tendo sido ouvido em qualquer das fases do procedimento – alínea b) do n.º 1 – é dispensada a sua audição antes da liquidação, salvo em caso de invocação de factos novos sobre os quais ainda se não tenha pronunciado.
A circunstância do contribuinte ter reclamado graciosamente contra o acto de liquidação e de aí lhe ter sido assegurado o direito de se pronunciar sobre o projecto de decisão final da reclamação, não dispensa a audição prévia no recurso hierárquico, já que esse direito de audiência se reporta a um outro procedimento, que é o de recurso hierárquico e que é formal e substancialmente distinto do procedimento de reclamação graciosa e da liquidação adicional».
Com estes fundamentos, a sentença julgou verificada a preterição de formalidade legal essencial, por violação do disposto no art. 60.º, n.ºs 2, alínea b), e 3, da LGT.
Insurge-se a Fazenda Pública contra este entendimento e decisão. Se bem interpretamos as alegações de recurso e respectivas conclusões, admitindo embora que o direito de audição, como modo de efectivar o direito de participação, se impõe antes da liquidação e antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições, nos termos do art. 60.º, n.º 1, alíneas a) e b), da LGT, a Recorrente sustenta que não se verifica a apontada preterição de formalidade legal. Isto porque «[n]o caso sub judicio, foi o Impetrante efectivamente notificado para exercer o direito de audição acerca das correcções efectuadas ao IRC, constantes do Relatório da Inspecção Tributária (vide pontos 1 e 2 do probatório) pelo que, nos termos do n.º 3 do artigo 60.º da LGT, estava dispensada a sua audição antes da liquidação, tendo ainda presente a excepção contemplada na norma» e porque «o que o legislador pretendeu acautelar foi a audição dos contribuintes em qualquer das fases do procedimento que culmina com a liquidação, não tendo os mesmos que exercer esse direito em cada uma das diferentes fases procedimentais, isso se já se tiverem pronunciado sobre as questões que importem à decisão e sobre as provas produzidas, i.e., pode ser dispensada a audiência dos interessados a não ser que se invoquem factos novos sobre os quais ainda se não tenham pronunciado, como se apreende do citado artigo 103.º, n.º 2, alínea a) do CPA, e neste sentido se pronuncia a jurisprudência do venerando STA proferido no Processo n.º 0497/11, de 29.06.2011, disponível em www.dgsi.pt». Assim, e porque, «na verdade, o Impugnante foi notificado para exercer o direito de audiência prévia relativamente à proposta de indeferimento total da reclamação graciosa para poder assim, pronunciar-se sobre as questões fácticas e jurídicas que motivaram a decisão de indeferimento da mesma por parte da AT, mas prescindiu do uso dessa faculdade (vide pontos 4 e 5 do probatório)», bem andou a AT na medida em que, «aquando da decisão do recurso hierárquico que secundou o indeferimento da reclamação – confirmando em parte o sentido desta –, entendeu a AT ser de dispensar a audiência do interessado, com o fundamento de que não foram invocados factos sobre os quais aquele ainda se não tivesse pronunciado (vide pontos 7 a 9 do probatório), e não ouvir novamente o ora Recorrido antes da decisão que defere parcialmente o recurso hierárquico».
Desde logo, diremos que mal se compreende a referência à dispensa da audiência prévia à liquidação ao abrigo do n.º 3 do art. 60.º da LGT por o Contribuinte ter sido notificado para exercer esse direito relativamente às correcções propostas no relatório da inspecção antes da liquidação adicional ora impugnada.
Na verdade, o que está em causa na situação não é ter-se ou não se ter concedido ao Contribuinte a possibilidade de exercer o direito de audiência previamente à liquidação. O que se controverte nos autos é se essa possibilidade deveria também ter sido facultada ao Contribuinte antes de decisão do recurso hierárquico (obviamente, depois da liquidação adicional).
Sustenta também a Recorrente que não se impunha a notificação para esse efeito porque o Contribuinte havia já sido notificado para exercer o direito de audiência previamente à decisão da reclamação graciosa, «mas prescindiu do uso dessa faculdade», e porque «não foram invocados factos sobre os quais aquele ainda se não tivesse pronunciado».
Se a Recorrente pretende extrair argumento em favor da sua tese do facto de o Contribuinte ter prescindido do exercício do direito de audiência antes da decisão da reclamação graciosa – o que não resulta inequívoco –, diremos que o mesmo não colhe. Não será por o contribuinte ter prescindido do exercício do direito num determinado procedimento ou fase procedimental que a Administração fica autorizada a recusar-lhe no futuro a faculdade de exercício do mesmo direito num procedimento diverso ou numa outra fase processual, caso a lei o imponha. Na verdade, o direito de audiência é um verdadeiro direito e, por isso, de exercício facultativo, não estando prevista sanção ou consequência desfavorável alguma para o seu não uso, que, aliás, seria contrário à sua natureza, que é a de permitir (e não obrigar) aos administrados o direito de participação na formação das decisões e deliberações que lhes disserem respeito (cfr. art. 267.º, n.º 5, da CRP).
O que cumpre averiguar é se, tendo sido concedida ao Contribuinte a possibilidade de exercer esse direito antes da decisão da reclamação graciosa, como foi no caso, pode a AT dispensar-se de lhe conceder essa possibilidade (que, para ela, constitui um dever) antes da decisão do recurso hierárquico (omitindo a notificação para o efeito), ainda que não tenham em sede de recurso hierárquico sido invocados factos sobre os quais aquele ainda não se tivesse pronunciado, o que, nesse caso, também importará averiguar.
Sustenta a Recorrente, no que é secundada pelo Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, que, porque foi concedida ao Contribuinte a possibilidade de exercer o direito de audiência previamente à decisão da reclamação graciosa, a AT já não tinha que lhe conceder esse possibilidade previamente à decisão do recurso hierárquico. Para tanto, louvam-se no disposto no n.º 3 do art. 60.º da LGT, na posição de LIMA GUERREIRO, em comentário àquele preceito (O Procurador-Geral Adjunto cita ANTÓNIO LIMA GUERREIRO, na Lei Geral Tributária Anotada, Editora Rei dos Livros, notas 11 e 12 ao art. 60.º, págs. 278 e 279, onde aquele autor afirma, respectivamente: «O direito de audição não se aplica necessariamente aos chamados procedimentos de segundo grau, incluindo reclamações ou recursos hierárquicos. De acordo com o princípio da unidade do procedimento, apenas quando, nos procedimentos de segundo grau, se abrir nova fase instrutória, tem lugar o direito de audição. Não há, nos procedimentos de segundo grau, direito de audição, quando a decisão se deva basear nos mesmos factos em que fundamentou a decisão anterior» e «O direito de audição é exercido geralmente por uma única vez no procedimento: finda a instrução e antes da decisão. Não pode ser utilizado para introduzir dilações sucessivas no procedimento. O presente artigo recusa, pois, a ideia de qualquer dupla ou tripla audição no procedimento».) e em jurisprudência da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo (Invocam os seguintes acórdãos:
- de 29 de Junho de 2011, proferido no processo n.º 497/11, publicado no Apêndice ao Diário da República de 6 de Janeiro de 2012 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2011/32220.pdf), págs. 1122 a 1130, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/b2f1d75272455755802578c6004e9c93;
- de 16 de Janeiro de 2013, proferido no processo n.º 670/12, publicado no Apêndice ao Diário da República de 11 de Março de 2014 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2013/32210.pdf), págs. 116 a 123, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/ddff0517f5cb05e480257afb0037b4fe.).
Salvo o devido respeito, não podemos concordar.
Desde logo, porque a posição sustentada pela Recorrente não encontra apoio na lei – nem na sua letra, nem na sua razão de ser (sendo que esta deve procurar-se a partir daquela, como resulta do disposto do art. 9.º do Código Civil) – e também porque tem na sua génese um entendimento restritivo do direito de participação que não podemos subscrever. Vejamos:
O n.º 3 do art. 60.º da LGT dispõe: «Tendo o contribuinte sido anteriormente ouvido em qualquer das fases do procedimento a que se referem as alíneas b) a e) do n.º 1, é dispensada a sua audição antes da liquidação, salvo em caso de invocação de factos novos sobre os quais ainda se não tenha pronunciado».
Como resulta da letra da norma («é dispensada a sua audição antes da liquidação»), a dispensa da audiência aí prevista refere-se ao procedimento de liquidação e ao momento anterior à prática do acto final desse procedimento (a liquidação propriamente dita). Ora, no caso, como deixámos já dito, não é o direito de audiência antes da liquidação que está em causa; é esse direito relativamente ao recurso hierárquico (rectius, o exercício desse direito previamente à decisão do recurso hierárquico) que foi interposto da decisão da reclamação graciosa deduzida contra a liquidação. Assim, não vislumbramos como possa aplicar-se aquele normativo à situação sub judice.
Como resulta dos seus termos e deixámos já dito, o n.º 3 do art. 60.º da LGT apenas dispensa a audição prevista na alínea a) do n.º 1 (i.e., a que é anterior ao acto de liquidação), e não em qualquer das outras situações previstas nas alíneas b) a e) do n.º 1 do mesmo artigo.
Mas não é só a letra da lei a não dar cobertura ao entendimento da Recorrente (Aliás, se ficássemos amarrados à letra da lei, então teríamos de concluir que a dispensa só é possível quando o contribuinte se tenha pronunciado efectivamente ao abrigo do direito de audiência, como decorre da expressão «sobre os quais se não tenha pronunciado» utilizada no n.º 3 do art. 60.º da LGT, e não apenas quando lhe tenha sido concedida essa faculdade. No entanto, «é manifesto que bastará para justificar a dispensa do exercício do direito de audição que o sujeito passivo tenha tido anteriormente a possibilidade de se pronunciar sobre a matéria relevante para a decisão e não que se tenha efectivamente pronunciado, pois se teve oportunidade de se pronunciar e não o quis fazer, não se poderá dizer que não foi assegurado o exercício desse direito» (cfr. JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, I volume, nota de rodapé 755 em anotação 15 ao art. 45.º, pág. 433).); também a razão de ser que preside à audiência, impondo-a à AT como um dever e ao contribuinte como um direito, não permite extrair argumento algum a favor da dispensa da audiência previamente à decisão do recurso hierárquico.
Na verdade, o princípio da participação – que vimos já ter merecido consagração constitucional no art. 267.º, n.º 5, da Lei Fundamental – visa que as decisões administrativas sejam, na sua formação, participadas pelos seus destinatários (decorrência da mudança do paradigma da Administração autoritária para a Administração participada), ou seja, ao administrado deve ser facultada a possibilidade de ter intervenção activa no processo de formação da decisão administrativa que lhe respeite.
Esse princípio veio a ser concretizado no art. 8.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) – de acordo com o qual «os órgãos da administração pública devem assegurar a participação dos particulares, bem como das associações que tenham por objecto a defesa dos seus interesses, na formação das decisões que lhes disserem respeito, designadamente através da respectiva audiência», de harmonia com as regras fixadas nos arts. 100.º a 103.º, e veio igualmente a ser acolhido no âmbito do procedimento tributário no art. 60.º da LGT, sob a forma de «direito de audição do contribuinte», e no art. 45.º do CPPT.
Assim, só em casos em que essa intervenção no processo de formação da decisão se afigura, com segurança, totalmente desnecessária, por inútil, se poderá admitir a sua dispensa. Em todo o caso, essa dispensa deve resultar expressamente da lei, não se permitindo à Administração qualquer juízo de oportunidade relativamente a facultar ou não o exercício do direito de audiência.
Deixámos já dito que, a nosso ver, a dispensa da audiência do contribuinte antes da decisão do recurso hierárquico não pode ser justificada com base no n.º 3 do art. 60.º da LGT.
Também não encontramos fundamento legal para que o facto de ter sido concedida ao Contribuinte a oportunidade de exercer o direito de audiência previamente à decisão da reclamação graciosa dispense a audiência previamente à decisão do recurso hierárquico. Só assim não seria caso a decisão do recurso hierárquico houvesse sido totalmente favorável ao Contribuinte, hipótese em que a alínea a) do n.º 2 do art. 60.º da LGT prevê a dispensa da audiência prévia, o que não foi o caso. Na verdade, sendo que a decisão do recurso hierárquico foi no sentido do deferimento parcial, a alínea b) do n.º 1 do referido art. 60.º da LGT impunha a audiência prévia.
Por outro lado, apesar de ambos os procedimentos em causa – de reclamação graciosa e de recurso hierárquico – se destinarem à reavaliação da liquidação adicional, não podemos afirmar que a solução preconizada em cada um deles seja a mesma, como resulta manifesto da divergência de decisões neles proferidas: enquanto no primeiro a decisão foi de improcedência, no segundo a decisão foi de parcial procedência. O que significa que a argumentação jurídica considerada não foi a mesma ou, pelo menos, não foi integralmente a mesma ou não foi ponderada no mesmo sentido.
Ora, sendo certo que há doutrina (Cfr. LIMA GUERREIRO, ob. cit., que sustenta que nos procedimentos de segundo grau apenas há lugar ao direito de audiência quando «se abrir nova fase instrutória», não existindo esse direito «quando a decisão se deva basear nos mesmos factos em que fundamentou a decisão anterior» (nota 11 ao art. 60.º, pág. 277).) e jurisprudência (Cfr. a jurisprudência invocada pela Recorrente e pelo Procurador-Geral Adjunto.) que restringem o exercício do direito de audiência em sede de procedimento de segundo grau aos casos em que há novos factos a motivar a decisão, nada na lei permite concluir que o direito de audiência se pode dispensar quando haja apenas matéria de direito a considerar na decisão a proferir.
Como diz JORGE LOPES DE SOUSA, «há que notar que não é apenas quando a decisão se fundamenta em factos não afirmados pelos interessados que se justifica o direito de audiência, pois o direito de participação na formação na decisão constitucionalmente reconhecido reporta-se à sua globalidade, abrangendo por isso, o direito de este se pronunciar sobre qualquer questão de direito relativamente à qual não haja sintonia entre a sua posição e a que a administração tributária pretende adoptar no procedimento tributário» (Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, I volume, anotação 3 ao art. 45.º, pág. 426.). O mesmo Autor explica detalhadamente por que o direito de audiência não se justifica só nos casos em que haja apreciação de factos, mas também tem lugar nos casos em que tenha de haver apenas apreciação de questões de direito (Ibidem, sendo que o Autor, comentando a Circular n.º 13/99, de 8 de Julho de 1999 (disponível em http://info.portaldasfinancas.gov.pt/NR/rdonlyres/D9501C35-463A-420D-A531-3D2C5DAF846A/0/circular_13_de_08-07-1999_direccao_de_servicos_de_justica_tributaria.pdf),
designadamente os casos aí previstos sob a alínea a) das «Decisões sujeitas a audiência» – casos descritos como «As decisões que se fundamentam em factos não revelados nos pedidos, petições, reclamações ou recursos hierárquicos, apresentados pelos contribuintes» –, salienta que «em relação à situação referida na alínea a), há que notar que não é apenas quando a decisão se fundamenta em factos não afirmados pelos interessados que se justifica o direito de audiência, pois o direito de participação na formação na decisão constitucionalmente reconhecido reporta-se à sua globalidade, abrangendo por isso, o direito de este se pronunciar sobre qualquer questão de direito relativamente à qual não haja sintonia entre a sua posição e a que a administração tributária pretende adoptar no procedimento tributário».).
No procedimento administrativo comum, a dispensa de audiência prévia nos procedimentos de 2.º grau, como o é o recurso hierárquico, quando o interessado se tenha já pronunciado sobre todos os factos ou questões relevantes para a decisão em anterior fase do procedimento, nomeadamente em procedimento de 1.º grau, e não haja factos ou elementos novos no recurso, tem vindo a ser sustentada ao abrigo da alínea a) do n.º 2 do art. 103.º do CPA, na redacção anterior à do Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro, à qual hoje corresponde o art. 100.º, n.º 3, alínea d).
Como resulta do que deixámos já dito, entendemos que esse regime não tem aplicação no procedimento tributário. Na verdade, da alínea b) do n.º 1 do art. 60.º da LGT resulta, expressamente, o dever de proceder a audição prévia do interessado, em caso de indeferimento total ou parcial, nos procedimentos de 2.º grau.
Por outro lado, se é certo que com a alteração efectuada ao art. 60.º da LGT pela Lei n.º 16-A/2002, de 31 de Maio (primeira alteração à Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro, que aprova o Orçamento do Estado para 2002), o legislador contemplou um caso de dispensa de audição prévia em termos idênticos aos previstos na alínea a) do n.º 2 do art. 103.º do CPA, não o é menos que, como resulta expressamente do n.º 3 do art. 60.º da LGT, restringiu-o às situações anteriores à liquidação.
Ora, porque a LGT se assume como lei especial relativamente ao CPA, prevendo aquela Lei causas específicas de dispensa da audiência prévia, não pode considerar-se (Sobretudo após a redacção dada ao n.º 3 no art. 60.º pela Lei n.º 16-A/2002, de 31 de Maio.) que exista lacuna (Lacuna é uma «incompletude contrária ao plano do Direito vigente, determinada segundo critérios eliciáveis da ordem jurídica global» (cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, pág. 194.).) alguma, a justificar uma eventual aplicação subsidiária do CPA.
Não desconhecemos que a AT afirmou a desnecessidade de audição em sede dos procedimentos de segundo grau, na doutrina subscrita na Circular n.º 13/99, de 8 de Julho de 1999 (Ver nota 11 quanto ao local em que a mesma está disponível para consulta.), da Direcção de Serviços de Justiça Tributária, em cujo ponto 3 se afirma que a audiência «poderá ser dispensada», nomeadamente, nos casos em que «A administração tributária pratique um acto com base em factos já submetidos, noutra fase do procedimento, a audiência dos contribuintes» [alínea c)], e, explicando porquê, afirma que «a participação do contribuinte só deverá verificar-se mais uma vez quando haja factos novos e apenas no âmbito de um procedimento que tenha diversas fases ou vários procedimentos sequenciais. Neste sentido dispõe a alínea a) do artigo 103.º do CPA.//Assim, por exemplo, não deverá haver direito de audição antes de uma liquidação quando esta se fundamenta em correcções efectuadas em acção inspectiva, sempre que nesta fase do procedimento já tenha sido possibilitado o exercício daquele direito.//O mesmo acontece nos procedimentos de segundo grau, de que são exemplo as reclamações e os recursos hierárquicos, sempre que não existam factos novos capazes de influenciar a decisão final e o contribuinte já tenha sido ouvido sobre os factos em discussão, no procedimento objecto do recurso ou reclamação».
Ou seja, segundo a doutrina veiculada pela referida circular, nos procedimentos de 2.º grau, designadamente nas reclamações graciosas e recursos hierárquicos, a audição do contribuinte só terá lugar quando o fundamento da decisão se basear em matéria de facto nova, i.e., em factos que não constavam do procedimento de primeiro grau. Se bem alcançamos a razão de ser dessa doutrina, a mesma assenta no princípio da unidade do procedimento: o direito de audição, nos procedimentos de segundo grau, apenas existirá se se abrir nova fase instrutória, e já não quando a decisão se basear nos mesmos factos que fundamentaram a decisão anterior.
Salvo o devido respeito, a doutrina só pode valer caso a decisão a proferir no procedimento de 2.º grau seja substancialmente idêntica à que foi proferida no procedimento de 1.º grau. Assim não sendo, ou seja, quando a decisão a proferir no procedimento de 2.º grau não seja idêntica, quer nos seus pressupostos factuais, quer na solução ou soluções jurídicas das questões sob apreciação, àquela que foi proferida no procedimento de 1.º grau, não encontramos base legal que autorize restringir o direito (constitucionalmente consagrado e, por isso, insusceptível de eliminação ou compressão pelo legislador ordinário) de participação, designadamente não concedendo ao sujeito passivo que deduziu recurso hierárquico a possibilidade de exercer o direito de audição prévia à decisão com o fundamento de que essa possibilidade lhe foi já concedida previamente à decisão da reclamação graciosa.
Note-se que o princípio da máxima efectividade das normas constitucionais impõe que lhes seja atribuído o sentido que lhes der maior eficácia (Cfr. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional – Teoria da Constituição, 3.ª edição, pág. 1149.).
Aliás, a própria Circular n.º 13/99, depois de no seu n.º 3 logo alertar que «[a] audiência dos interessados poderá ser dispensada, sem prejuízo da necessária ponderação do caso concreto e de adequada fundamentação» (sublinhado nosso), no seu n.º 4 salienta que «[a]s orientações divulgadas nas presentes instruções não obstam a que, em caso de dúvida, se possibilite o exercício do direito de participação».
Por outro lado, ulteriormente à referida circular e como bem referiu o Recorrido, a extinta Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (A Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo, cuja orgânica constava do Decreto-Lei n.º 82/2007, de 29 de Março, foi extinta pelo Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15 de Dezembro, diploma que aprovou a orgânica da Autoridade Tributária e Aduaneira, tendo esta última entidade sucedido nas atribuições daquela, como resulta do respectivo art. 12.º, n.º 1.), emitiu doutrina em sentido contrário, através da Circular n.º 17/2008, de 14 de Fevereiro de 2008. Aí, com os mesmos fundamentos que acima enunciamos, no ponto 6 afirma-se expressamente que «em sede de recurso hierárquico regido pelos arts. 66.º e segs. do CPPT, deverá ser efectuada audição prévia, mesmo que não sejam invocados factos novos relativamente à decisão recorrida e o interessado já tenha sido ouvido em audição prévia em procedimento de 1.º grau, sob pena de invalidade do acto final de indeferimento do recurso».
Por tudo o que deixámos dito, afigura-se-nos que bem decidiu a sentença ao concluir que a falta de audição da recorrida antes da decisão de indeferimento do recurso hierárquico que havia interposto consubstancia preterição de formalidade essencial com efeitos invalidantes, mas apenas sobre o recurso hierárquico, que não sobre a liquidação (Neste sentido, os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 15 de Outubro de 2008, proferido no processo n.º 542/08, publicado no Apêndice ao Diário da República de 11 de Fevereiro de 2009 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2008/32240.pdf), págs. 1178 a 1182, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/d726eabf7a9010b1802574e9003a104a;
- 27 de Janeiro de 2016, proferido no processo n.º 174/15, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/29e85eee45a6d43480257f4e003e6834.), uma vez que, obviamente, a verificação de um vício de forma em sede de recurso hierárquico não se repercute na legalidade da liquidação, acto anterior.
Cumpre, pois, avançar na sindicância da sentença quanto às ilegalidades da liquidação, designadamente averiguando se fez correcto julgamento quanto à falta de fundamentação.

2.2.3 DA INSUFICIÊNCIA DA FUNDAMENTAÇÃO DA CORRECÇÃO SUBJACENTE À LIQUIDAÇÃO

A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto anulou a liquidação porque considerou que este acto estava insuficiente fundamentado no que se refere à correcção motivada pela não retenção na fonte de rendimentos atribuídos a não residentes em território português, correspondente aos pagamentos de rendimentos de títulos de dívida emitidas pelas entidades SFE e SFI instaladas na Zona Franca da Madeira a investidores não residentes, colocados no mercado internacional de obrigações através do investidor C…………. que custodiava os títulos que originaram aquele pagamento. Mais concretamente, após tecer diversos considerandos de natureza doutrinal sobre o dever de fundamentação e seu conteúdo – considerandos que subscrevemos e que, no essencial, constituem a expressão da doutrina e da jurisprudência sobre o tema, motivo por que nos dispensamos de os reiterar –, entendeu que a AT, no relatório de inspecção que constitui o discurso fundamentador externado como suporte do acto de liquidação, «não identifica a lei violada, no que concerne às retenções na fonte e refere que a impugnante não fez qualquer prova da “qualidade de não residente”, relativamente a estes investidores (C………..). // No mesmo relatório, e após a audição final, consta que “Para efeitos fiscais, é necessária a prova da “qualidade de não residente”, para se efectivar a isenção em causa, a qual não foi apresentada (relativamente a estes investidores (C…………)). // Na fundamentação não se identifica quem são as entidades não residentes (embora no anexo n.º 77 constem várias entidades), a norma que permite a isenção do pagamento ao abrigo da qual a impugnante se sustentou. Refere a necessidade da prova da “qualidade de não residente” porém não identifica a norma ou normas legais e respectivos requisitos de prova. // Verifica-se que a Administração não fez o enquadramento legal, não identifica correctamente as entidades, bem como não demonstra quais foram as normas violadas e não cumpridas pelo impugnante. A inspecção acciona a regra geral, mas não explica, claramente, os motivos factuais e de direito que levaram à liquidação».
E prossegue a sentença, na sindicância da legalidade da liquidação na parte respeitante à referida correcção e à luz do dever de fundamentação, que «em sede de reclamação graciosa houve um esforço de qualificação do facto tributário e de fundamentação da liquidação do imposto», designadamente através da apropriação pelo decisor da informação n.º 115-AJT/05, a qual «para contextualizar a liquidação, […] suporta-se na alínea b) do n.º 6 do art. 33.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF) (antigo art. 41.º)» e «[n]o que refere à falta de comprovativos da “qualidade de não residente” remete-se para a al. a) do n.º 3 do art. 98.º do CIRC e art. 9.º do Decreto-Lei n.º 215/89 e no que concerne aos emigrantes o n.º 1 da Portaria n.º 1476/95 de 23.12».
Mas, logo salientou a Juíza do Tribunal a quo que «a reclamação graciosa não pode servir para colmatar deficiências, obscuridades da fundamentação do acto de liquidação». Ou seja, considerou que apenas se pode considerar a fundamentação contextual do acto – a externada quando até à liquidação – e já não a fundamentação aduzida a posteriori.
A Fazenda Pública discorda deste julgamento e sustenta que a liquidação está suficientemente fundamentada. Para ela, este acto, no que à correcção sob análise respeita – e reportando-nos nós apenas às referências anteriores ao acto de liquidação (Pois só estas, como veremos adiante, relevam para aferir a validade formal do acto de liquidação no que se refere às exigências legais de fundamentação.) –, permite «perceber a sua natureza, as disposições legais aplicáveis»; isto, em síntese, porque a liquidação «assentou designadamente nos dados e elementos fornecidos pelo contribuinte e resultou da não retenção na fonte do IRC que se mostrava devido aquando do pagamento de juros originados pelos empréstimos obtidos dos investidores», no pressuposto de que «terão sido esses rendimentos pagos exclusivamente a não residentes, não obstante a inexistência de prova da não residência», sendo que foi o próprio Impugnante quem «assumiu, à data do procedimento inspectivo, que desconhecia quem eram os subscritores dos títulos, assim como o facto de os mesmos serem seus clientes, alegando que só a C………….. dispunha da informação relativa aos beneficiários dos juros pagos» e, assim, «não sendo possível demonstrar a qualidade de não residente dos beneficiários, aquando da retenção na fonte do imposto sobre os juros pagos pelas sucursais financeiras exterior e internacional da recorrida, a liquidação de imposto teria que ocorrer, de harmonia com o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 88.º e n.º 2 do artigo 4.º do CIRC». Prossegue a Recorrente, sustentando que, quando do exercício do direito de audiência sobre o projecto de relatório da inspecção, o Impugnante «esclareceu que os juros pagos a não residentes estavam isentos de IRC nos termos da alínea b) do artigo 33.º do EBF, mas a correcção foi mantida por os Serviços de Inspecção considerarem que não foi feita a prova da qualidade de não residente».
Em resumo, a sentença julgou que a liquidação, na parte que se refere à correcção que teve origem na não retenção do imposto sobre os rendimentos (juros) gerados pelos empréstimos obrigacionistas, não estava suficientemente fundamentada porque a AT i) não indicou qual a norma violada, ou seja, a norma legal que impunha a retenção na fonte, porque também ii) não indicou quais as entidades que considerou não residentes e, finalmente, porque iii) não indicou qual a norma que impõe sobre o Impugnante a necessidade de prova da “qualidade de não residente” das entidades beneficiárias dos rendimentos e os respectivos requisitos de prova.
A esse julgamento, contrapôs a Recorrente, em síntese, que a liquidação foi efectuada porque, não tendo o Impugnante feito a prova da qualidade de não residente dos beneficiários dos juros, se impunha que tivesse retido o imposto respeitante a estes rendimentos, ao abrigo do disposto nos arts. 4.º, n.º 2, e 88.º, n.º 1, alínea c), do CIRC, disposições legais que dispunham: respectivamente, que «As pessoas colectivas e outras entidades que não tenham sede nem direcção efectiva em território português ficam sujeitas a IRC apenas quanto aos rendimentos nele obtidos» e que «O IRC é objecto de retenção na fonte relativamente aos seguintes rendimentos obtidos em território português: […] c) Rendimentos de aplicação de capitais não abrangidos nas alíneas anteriores e rendimentos prediais, tal como são definidos para efeitos de IRS, quando o seu devedor seja sujeito passivo de IRC ou quando os mesmos constituam encargo relativo à actividade empresarial ou profissional de sujeitos passivos de IRS que possuam ou devam possuir contabilidade».
Vejamos se a sentença fez correcto julgamento ou, pelo contrário e como sustenta a Recorrente, a fundamentação se pode ter como suficiente.
Antes do mais, convém ter presente que, como a sentença bem salientou, a única fundamentação a considerar na apreciação da validade formal do acto impugnado é a que consta do relatório da inspecção que lhe serviu de suporte (e que integra o próprio acto, pois foi por ele apropriada), ou seja, a que é contemporânea da prática do acto (cfr. n.º 1 do art. 125.º do CPA velho, a que corresponde actualmente o n.º 1 do art. 153.º), não relevando a fundamentação a posteriori (Neste sentido, entre muitos outros, os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 16 de Setembro de 2015, proferido no processo n.º 156/15, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/55889196a1f606bb80257ec700323891;
- de 27 de Janeiro de 2016, proferido no processo n.º 43/16, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/605684522d35f1b680257f4c005084c2;
- de 6 de Julho de 2017, proferido no processo n.º 1436/15, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/331701d808a68d3080257ff0003bb657.). O discurso fundamentador aduzido quando da decisão da reclamação graciosa, porque ulterior à prática do acto de liquidação, não se pode considerar como integrando a fundamentação do mesmo.
Relembrando o relatório de inspecção elaborado pela Direcção de Serviços de Prevenção e Inspecção Tributária, parcialmente transcrito no n.º 2 dos factos provados, vejamos o que invocou a AT como suporte da liquidação (Tenha-se presente que nada obsta à fundamentação por remissão (cfr. n.º 1 do art. 125.º do CPA velho, a que hoje corresponde o n.º 1 do art. 153.º).), no que à referida correcção respeita:
«[…] 1.3.3 Pagamento de rendimentos no momento de vencimento dos respectivos cupões, referentes a títulos de Dívida emitida pelo próprio Banco
O sujeito passivo apresenta no seu balanço, na área de passivo, vários empréstimos obrigacionistas.
De acordo com os procedimentos a adoptar nesta área, procedemos à verificação da correcta liquidação, no âmbito das retenções na fonte de imposto sobre o rendimento, nos vários momentos de pagamento da remuneração dos títulos emitidos.
Ao analisarmos os documentos de suporte, verificámos que o contribuinte não procedeu à retenção na fonte do imposto, aquando do pagamento de juros dos empréstimos e momentos de pagamento, identificados no Anexo n.º 77, para alguns investidores, indicando que se tratava de pagamentos de juros pagos exclusivamente a não residentes.
No entanto, não fez qualquer prova da “qualidade de não residente” relativamente a estes investidores (C………….), pelo que não se poderá aplicar o regime fiscal previsto nas Convenções para Evitar a Dupla Tributação, sendo de aplicar as taxas internas prevista na al. c) do n.º 1 do art. 88.º do CIRC. Nos termos do n.º 4 do art. 91.º do CIRC (actual n.º 5 do art. 106.º), conjugado com os arts. 20.º e 28.º da Lei Geral Tributária, o A……….. é o responsável originário pela entrega do imposto que deveria ter retido, pelo que foi apurado imposto em falta, no montante 1.753.231,80 € (351.491.478$00) (cfr. Anexo n.º 77), de harmonia com o disposto na al. c) do n.º 1 do art. 75.º (actual art. 88.º) e no n.º 2 do art. 4.º, ambos do CIRC.
(…)
X - DIREITO DE AUDIÇÃO
(...)
Analisado o documento mencionado e considerando os argumentos/documentos apresentados o Sujeito Passivo, foram alterados os seguintes pontos do Projecto de Conclusões:
(…)
1.3.3 – Pagamento de rendimentos no momento de vencimento dos respectivos cupões, referentes a títulos de Dívida emitida pelo próprio Banco
Relativamente a esta correcção, o contribuinte vem alegar que se tratam de rendimentos pagos a entidades não residentes e como tal isentos nos termos da al. b) do n.º 6 do art. 33.º do EBF (Cfr. Anexo n.º 90, fls. 19 a 21).
Para efeitos fiscais, é necessária a prova da “qualidade de não residente”, para se efectivar a isenção em causa, a qual não foi apresentada (relativamente a estes investidores (C…………)).
Atendendo ao acima referido mantém-se a correcção inicial de 1.756.237.80 € (351.497.418$00 Cfr. Anexo n.º 77)».
Em face da fundamentação aduzida pela AT até à prática da liquidação – única que releva, nos termos acima referidos –, que é a que consta do relatório dos serviços de inspecção que acima transcrevemos, não podemos concordar com a sentença quando afirma que a AT não indicou a norma ao abrigo da qual se impunha a retenção na fonte. Na verdade, do discurso externado resulta inequívoco que, a seu ver, o ora Recorrido estava obrigado a reter na fonte o imposto sobre o rendimento devido pelo pagamento dos juros respeitantes aos empréstimos obrigacionistas, ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 1 do art. 88.º do CIRC, na redacção aplicável (Que é a anterior à republicação operada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho.), norma que expressamente invocou. Aliás, quanto à obrigação de retenção, a AT invocou também o disposto no art. 91.º, n.º 4, do CIRC e os arts. 20.º e 28.º da LGT.
Mas, por outro lado, tendo o ora Recorrido, nas palavras da própria AT, argumentado, quer em sede de inspecção («indicando que se tratava de pagamentos de juros pagos exclusivamente a não residentes»), quer em sede de audiência prévia ao relatório de inspecção («vem alegar que se trata de rendimentos pago a entidades não residentes e como tal isentos nos termos da alínea b) do n.º 6 do art. 33.º do EBF»), que não tinha procedido à retenção porque os juros devidos pelos empréstimos obrigacionistas em questão foram pagos a entidades não residentes, motivo por que se deviam ter como isentos ao abrigo da alínea b) do n.º 6 do art. 33.º («6- São isentos de IRS ou de IRC os rendimentos pagos pelas instituições de crédito instaladas nas zonas francas, quaisquer que sejam as actividades exercidas pelos seus estabelecimentos estáveis nelas situados, relativamente às operações de financiamento dos passivos de balanço desses estabelecimentos, desde que os beneficiários desses rendimentos sejam: […] b) Entidades não residentes em território português, exceptuados os estabelecimentos estáveis nele situados e fora das zonas francas».) Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), na redacção aplicável (Que é a que vigorou até a republicação operada pelo Decreto-Lei n.º 108/2008, de 26 de Junho.), era mister que a AT referisse qual a disposição legal que impunha que o ora Recorrido, como condição para a não retenção de IRC sobre os juros em causa, fizesse prova da «qualidade de não residente» dos beneficiários dos juros e, até mais do que isso, se esta prova constituía um requisito ad substantiam da não retenção do imposto, a efectuar por algum modo específico, como parece intuir-se da circunstância de se ter referido que tal prova não estava feita «no momento de vencimento dos respectivos cupões», o que parece excluir a possibilidade de a mesma vir a ser feita ulteriormente.
Ora, compulsado o discurso externado, não vislumbramos que a AT tenha sequer ensaiado qualquer tentativa de fundamentar de direito a exigência de prova da qualidade de não residente que pretende deveria estar feita no momento do pagamento dos juros para que o ora Recorrido pudesse abster-se da retenção do imposto. Na verdade, encontramos apenas uma obscura e não concretizada referência à impossibilidade de aplicação do «regime fiscal previsto nas Convenções para Evitar a Dupla Tributação», cujo alcance não logramos atingir.
Não pode perder-se de vista que a fundamentação é um conceito relativo, que varia em função do concreto tipo de acto e que «o grau de fundamentação exigível deverá estar directamente relacionado com o grau de litigiosidade existente, isto é, com a divergência existente entre a posição da administração e do contribuinte» (SALDANHA SANCHES, suplemento Economia do jornal Público de 4 de Março de 1991.), sendo que o que releva para esse efeito, atento o carácter essencialmente instrumental do dever de fundamentação, é a efectiva possibilidade de um destinatário normal ficar habilitado, através da externação de motivos coeva ao acto, a conhecer as razões que o suportam, permitindo-lhe assim optar entre conformar-se com ele ou atacá-lo graciosa ou contenciosamente.
Assim, atento referido o carácter instrumental daquele dever, a suficiência da fundamentação do acto tributário deve aferir-se pelo comprometimento da possibilidade de reacção contra o acto, sendo que esse comprometimento deve ser aferido, não em abstracto, mas em face das concretas circunstâncias da concreta situação trazida a juízo.
Como este Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a dizer (Vide, entre outros, os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 14 de Junho de 2012, proferido no processo n.º 327/12, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/a2392bbe7a5da75880257a2a0050c887;
- de 6 de Março de 2014, proferido no processo n.º 178/13, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/a4d07542182e1fb380257c990053bc6a;
- de 6 de Maio de 2015, proferido no processo n.º 291/13, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/7ae614cc3dde51ad80257e42004b7d80.), «o grau de fundamentação há-de ser o adequado ao tipo concreto do acto e das circunstâncias em que o mesmo foi praticado, de molde a satisfazer a divergência existente entre a posição da Administração Tributária e a do contribuinte».
Sendo que, relativamente à exigência de prova da “qualidade de não residente”, se manifestou desacordo entre as posições do ora Recorrido e da AT, ainda ao longo da inspecção, maxime aquando do exercício do direito de audiência, impunha-se que a AT, a fim de respeitar o dever de fundamentação que sobre ela impende, desse a conhecer os motivos, de facto e de direito, por que entendia que o contribuinte não podia eximir-se à retenção na fonte do imposto relativamente aos pagamentos dos juros em causa. No que se refere à fundamentação de facto, ela é clara: a AT não aceita que o aqui Recorrido não tenha procedido à retenção na fonte do imposto respeitante aos juros que pagou com referência aos empréstimos obrigacionistas que emitiu. Já quanto à fundamentação de direito, ela é pouco mais do que inexistente e, senão ambígua, claramente insuficiente: para que o Contribuinte pudesse ter deixado de reter o imposto, exigia-se que tivesse prova de que cada um dos beneficiários dos juros detinha a “qualidade de não residente”. Porquê? Ou melhor, qual a norma ou disposição legal que impõe ou ao abrigo da qual se acolhe essa exigência? A AT nunca o disse antes da liquidação, remetendo apenas para uma enigmática impossibilidade de aplicação do «regime fiscal previsto nas Convenções para Evitar a Dupla Tributação».
Ora, reiteramos, era precisamente quanto a esse ponto, porque era onde residia a divergência de posições entre o Contribuinte e a AT, que as exigências de fundamentação se faziam sentir com mais acuidade.
A fundamentação por remissão, como é a do acto impugnado, obriga a que a informação, parecer ou proposta para que se remete contenha as razões de facto e de direito, ainda que de forma sucinta, mas de modo a que se perceba por que se decidiu naquele sentido. Não contendo tal informação, com suficiência e clareza os motivos, causas ou pressupostos da decisão, estamos perante a falta de fundamentação do acto administrativo, de acordo com o disposto no art. 125, n.ºs 1 e 2 do CPA velho, que é o aqui aplicável: a obscuridade e insuficiência da fundamentação do acto valem como falta de fundamentação. Por seu turno, a falta de fundamentação inquina o acto de ilegalidade que determina a sua anulabilidade.
É certo que ulteriormente, como bem refere a sentença recorrida, já em sede de reclamação graciosa, na informação n.º 115-AJT/05, que foi apropriada pela decisão de indeferimento proferida no âmbito daquele meio de impugnação graciosa (cfr. pontos 4. e 6. da factualidade dada como assente), a AT veio dizer que o comprovativo da “qualidade de não residente” era exigido pelo n.º 1 do art. 9.º do Decreto-Lei n.º 215/89, bem como, no que se refere aos emigrantes, pelo n.º 1 da Portaria n.º 1476/95, de 23 de Dezembro. No entanto, como ficou já dito e a sentença judiciosamente registou, esta fundamentação a posteriori não pode ser relevada quando estamos a sindicar a legalidade da liquidação sob a óptica do cumprimento do dever legal de fundamentação.
Em conclusão, a sentença fez correcto julgamento quanto à falta de fundamentação que considerou viciar o acto de liquidação no que respeita à correcção determinada pela não retenção de imposto quando do pagamento dos juros pelos referidos empréstimos obrigacionistas.
Assim, a sentença recorrida decidiu com acerto, sendo improcedentes as conclusões das alegações de recurso em tudo quanto dizem respeito à verificação deste vício de forma, o que prejudica o conhecimento das demais questões enunciadas.

2.2.4 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - O n.º 3 do art. 60.º da LGT apenas dispensa a audiência prevista na alínea a) do n.º 1 do mesmo artigo, ou seja, a que é anterior ao acto de liquidação, e não pode servir de fundamento à dispensa da audiência antes da decisão do recurso hierárquico, que deve sempre ter lugar, a menos que a decisão a proferir seja totalmente favorável ao interessado (cfr. alínea a) do n.º 2 do art. 60.º da LGT) ou que seja no mesmo sentido da decisão da reclamação graciosa e não haja novos factos ou questões jurídicas a considerar.

II - O grau de fundamentação exigível para que se considere cumprido o respectivo dever (previsto nos arts. 268.º, n.º 3, da CRP, no art. 77.º da LGT e no art. 123.º do CPA, este na redacção aplicável) está directamente relacionado com o grau de litigiosidade existente, isto é, com a divergência existente entre a posição da administração e do contribuinte.

III - Não pode considerar-se suficientemente fundamentada (equivalendo a insuficiência a falta de fundamentação, nos termos do art. 125.º do CPA) a correcção, e consequente liquidação, operada por a AT ter considerado que o sujeito passivo não podia ter deixado de efectuar a retenção do imposto quando do pagamento dos juros devidos pelos empréstimos obrigacionistas que emitiu sem que tivesse prova da “qualidade de não residente” dos beneficiários se, como única fundamentação de direito, e depois do sujeito passivo ter invocado que não havia disposição legal que lhe impusesse essa prova, ao invés de indicar a norma em causa, a AT se limitou a invocar, enigmática e sinteticamente, que, porque o contribuinte «não fez qualquer prova da “qualidade de não residente”», «não se poderá aplicar o regime fiscal previsto nas Convenções para Evitar a Dupla Tributação» (regime que ninguém invocou e nem sequer estava em causa).

IV - Ainda que ulteriormente, aquando do indeferimento da reclamação graciosa contra aquela liquidação, a AT tenha vindo a indicar as normas que, a seu ver, impunham aquela prova, essa fundamentação não pode ser usada para aferir da validade formal do acto impugnado, uma vez que a nossa ordem jurídica não confere relevância à fundamentação a posteriori.


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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo, em conferência, acordam em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

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Lisboa, 4 de Outubro de 2017. – Francisco Rothes (relator) – Isabel Marques da Silva – Casimiro Gonçalves.